sábado, 21 de junho de 2014

A FILOSOFIA METAFÍSICA


A Metafísica é uma palavra com origem no grego onde Meta significa além e Physis significa Física, e que significa "o que está para além da física". É uma doutrina que busca o conhecimento da essência das coisas.

Metafísica é uma área do conhecimento que faz parte da Filosofia. A Metafísica estuda os princípios da realidade para além das ciências tradicionais (Física, Química, Biologia, Psicologia, etc).
A Metafísica busca também dar explicações sobre a essência dos seres e as razões de estarmos no mundo. Outro campo de análise da Metafísica são as relações e interações dos seres humanos com o Universo.
Na História
O grego Aristóteles foi o filósofo que pensou e produziu mais conhecimentos sobre Metafísica na antiguidade. Já na época Moderna, podemos destacar os estudos do matemático e filósofo frânces René Descartes.
As principais questões levantadas e analisadas pela Metafísica são: O que é real? O que é liberdade? O que é sobrenatural? O que fazemos no nosso planeta? Existe uma causa primária de todas as coisas?
William James conceituou Metafísica como sendo "apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza".
Willian James, filósofo e psicólogo. Foi o mais influente dos pensadores dos EUA, criador do pragmatismo. Nasceu e, Nova Iorque, a 11 de Janeiro de 1842. O seu pai, Henru James, era um teólogo seguidor de Emanuel Swedenborg. Um dos seus irmãos foi o conhecido novelista Henry James. Concluiu os seus estudos de medicina, em 1870, na Universidade de Harvard, onde iniciou a sua carreira como professor de fisiologia em 1872. A partir de 1880 ensinou psicologia e filosofia em Harvard, universidade que abandonou em 1907, proferindo conferências nas universidades de Columbia e Oxford. Morreu em Chocorua, New Hampshire, a 26 de Agosto de 1910.
As suas Obras são: Princípios de Psicologia (1890), uma obra monumental que o projetou na comunidade científica e filosófica do tempo. A Vontade de Crer e Outros Ensaios Sobre Filosofia Popular (1897), A Imortalidade Humana (1898), Diversidade da Experiência Religiosa (1902). Pragmatismo: um nome novo para velhas formas de pensar (1907). Esta obra resume as contribuições de Willian James para o pragmatismo, termo empregue pela primeira vez por Charles Peirce.
Willian James aplica à psicologia o princípio do funcionalismo, integrando-a no conjunto das ciências experimentais.
Durante décadas aplicou os seus métodos empíricos à investigação de temas religiosos e filosóficos. Explorou a questão da existência de Deus, a imortalidade da alma, o livre arbítrio e os valores éticos, como fonte da experiência religiosa e moral.
O método pragmático, desenvolvido a partir da análise do fundamento lógico das ciências, converte-se na base da avaliação de qualquer experiência. O significado das ideias só pode ser analisado a partir das suas consequências. Se não produzem efeitos as ideias não têm sentido. As ideias metafisicas são desprovidas de sentido porque não podem ser comprovadas. As teorias com significado, segundo Willian James, são aquelas que permitem resolver problemas que decorrem da experiência.
Trata-se de uma visão simplista e equivocada de pessoas que só conseguem perceber a vida por meio de dimensões práticas. Os homens em geral sentem-se mais à vontade quando pensam sobre como fazer uma coisa ou outra, do que pensar no motivo pelo qual estão fazendo. É por isso que a política, a engenharia e a indústria são consideradas mais naturais pelos homens do que a Filosofia, por exemplos. A Metafísica não está interessada, de maneira nenhuma, por esse "comos" dos acontecimentos da vida humanas, mas sim pelos seus "porquês", por aquelas questões que uma pessoa pode passar a vida inteira para formular, sem muitas vezes encontrar uma resposta satisfatória.
Para se formular um pensamento metafísico é preciso pensar, sem estar baseado em dogmas ou de forma superficial, nos básicos e intrigantes problemas da existência dos homens. São problemas básicos por serem fundamentais para a vida humana e porque muitos aspectos da vida dependem deles. Tomemos como exemplo a religião, ela não é Metafísica, porém quando nos questionamos sobre o motivo das crenças e das práticas religiosas e sua influencia no viver diário, passamos a pensar metafisicamente.
Sob o título de “a Metafísica” Aristóteles escreveu uma de suas principais obras e o primeiro grande trabalho com relação ao que vem a ser Metafísica. O objeto de estudo dessa obra não é ser algum, mas o estudo do ser enquanto ser.
O termo Metafísica foi consagrado por Andrônico de Rodes a partir da ordenação dos livros aristotélicos referidos à ciência dos primeiros princípios e primeiras causas do ser.
Para Aristóteles a Metafísica é, simultaneamente, Ontologia, Filosofia e Teologia, na medida em que se ocupa do ser supremo dentro da hierarquia dos seres. Neste sentido, foi recolhida pela Filosofia tradicional até Kant, que se interrogou sobre a possibilidade da Metafísica como ciência.
A interpretação da Metafísica como estudo do "sobrenatural" é de origem neoplatônica. A tradição escolástica identificou o objeto de estudo da Metafísica com o da teologia, ainda que tenha distinguido as duas pelos métodos usados: para explicar Deus, a Metafísica recorre à razão e a teologia à revelação.
Na Idade Moderna, ocorre uma clara separação entre a concepção aristotélica e a neoplatônica: a Metafísica como ontologia se converte em teoria das categorias, teoria do conhecimento e teoria da ciência (epistemologia); como ciência do transcendental, se converte em teoria da religião e das concepções do mundo.
No século XVIII a Metafísica era considerada equivalente a uma explicação racional da realidade e no século XIX à pura especulação perante o caráter positivo das ciências. A partir de Heidegger e Jaspers, os pensadores interessados na problemática do ser se esforçaram por elaborar uma noção de Metafísica factível e atual.
A obra A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, da autoria de Kant (um importante nome no estudo da Metafísica) aborda a problemática da moralidade humana.
Metafísica da saúde
A Metafísica da saúde consiste em um recurso de autoajuda, que determina que muitas das doenças vividas pelas pessoas resultam de determinados padrões de comportamento e pensamento. A Metafísica da saúde não se trata de adivinhação, mas é fruto de estudos e pesquisas para designação das doenças causadas por desequilíbrios emocionais.
Existe uma coleção de livros intitulada "Metafísica da Saúde", da autoria de Valcapelli e Gasparetto.
Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade nem dogmatismo, nos mais básicos problemas da existência. Os problemas são básicos no sentido de que são fundamentais, de que muita coisa depende deles. A religiosidade humana, por exemplo, não é Metafísica; e, entretanto, se a teoria Metafísica do materialismo fosse verdadeira, e assim fosse um fato que os homens não têm alma, então grande parte da religião naufragaria diante desse fato. Também a Filosofia Moral não é Metafísica e, entretanto, se a teoria Metafísica do determinismo, ou se a teoria do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos pressupostos tradicionais seriam refutados por essas verdades. Similarmente, a Lógica não é Metafísica e, entretanto, se se apurasse que, em virtude da natureza do tempo, algumas asserções não são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias implicações para a Lógica tradicional.
A Metafísica é um ramo da Filosofia que estuda a essência do mundo. Ocupa-se em procurar responder perguntas tais como: O que é real? O que é natural? O que é sobrenatural? O ramo central da Metafísica é a Ontologia, que investiga em quais categorias as coisas estão no mundo e quais as relações dessas coisas entre si. A Metafísica também tenta esclarecer as noções de como as pessoas entendem o mundo, incluindo a existência e a natureza do relacionamento entre objetos e suas propriedades, espaço, tempo, causalidade, e possibilidade.
Isto sugere contrariamente ao que em geral se supõe que a Metafísica vê um alicerce da Filosofia e não o seu coroamento. Se for longamente exercido. O pensamento filosófico tende a resolver-se em problemas metafísicos básicos. Por isso o pensamento metafísico é difícil. Com efeito, seria provavelmente válido afirmar que o fruto do pensamento metafísico não é o conhecimento, mas o entendimento. As interrogações Metafísicas têm respostas e, entre as várias respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo. Se um homem enuncia uma teoria de materialismo e outro a nega, então um desses homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras teorias Metafísicas. Contudo, só muito raramente é possível provar e conhecer qual das teorias é a verdadeira. O entendimento, porém é, por vezes, uma profundidade muito considerável do mesmo resulta de vermos as persistentes dificuldades em opiniões que frequentemente parecem, em outras bases, ser muito obviamente verdadeiras. É por essa razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem que, não obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos. Tal homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode entender todas as razões para afirmar o que outro homem afirma com tamanha confiança. Mas, ao invés do outro, também vê algumas razões para duvidar e, assim, ele é, como Sócrates, o mais sábio, mesmo em sua profissão de ignorância. Advirta-se o leitor, neste particular, de que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião Metafísica com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em Metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas em torno de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então poderá estar inteiramente certo de que esse homem está infinitamente distante do entendimento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de dificuldades apenas porque ele se recusa obstinadamente a ver dificuldades.
Um problema metafísico é indispensável dos seus dados, pois são estes que, em primeiro lugar, dão origem ao problema. Ora o datum, ou dado, significa literalmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição. Assim, tomamos como dado de um problema certas convicções elementares do senso comum que todos ou a maioria dos homens estão aptos a sustentar com alguma persuasão íntima, antes da reflexão filosófica, e teriam relutância em abandonar. Não são teorias filosóficas. pois estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente, resultam da tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário, pontos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto que, para que se consiga alguma coisa, devemos começar por alguma coisa, e não se pode gastar o tempo todo apenas começando. Observou Aristóteles: "Procurar a prova de assuntos que já possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode fornecer é confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico com o derivativo," (Física, Livro VIII, Cap. 3) Exemplos de dados metafísicos são as crenças que todos os homens possuem, independentemente da Filosofia, de que existem, de que tem um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre tais cursos, de que envelhecem e morrerão algum dia etc. Um problema metafísico surge quando se verifica que tais dados não parecem concordar entre si, que têm aparentemente, as implicações que não se revestem de coerência entre si. A tarefa, então, é encontrar alguma teoria adequada à remoção desses conflitos.
A Metafísica nasceu na antiguidade, inicialmente se confundia com o que depois seria chamado de teoria do conhecimento, indagando sobre o que é a realidade, assim como esta realidade poderia ser conhecida.
Entretanto, quando os gregos começaram a buscar explicações racionais para a origem do mundo ordenado, o cosmos, o panorama se alterou.
Foi originada a cosmologia, a busca pelo principio ordenador da natureza, a força que provocava mudanças, chamada "physis".
Assim, a física seria uma explicação racional para a natureza, propiciando o entendimento do universo.
Uma concepção que deu origem a metafísica no ano 50 a.C, quando Andrônico de Rodes, ao classificar as obras de Aristóteles, cunhou a palavra, unindo o termo “meta” (depois de, após, acima de) com “física” (explicação racional da natureza).
A metafísica passou a significar, portanto, aquilo que está acima das explicações racionais da natureza, o que Aristóteles chamava de “filosofia primeira”, o estudo do “ser” enquanto “ser”.
Algo que depois seria chamado ontologia, a tentativa de entendimento das coisas por trás das aparências, além de sua concretude.
A busca pelo “ente”, a essência das coisas, antes de Aristóteles, já tinha sido objeto dos trabalhos de Parmênides.
Para ele, o “devir”, as mudanças, tornavam o pensar diferente do percebido, já que o percebido era pura aparência, enquanto o pensar expressaria o que é real.
Dentro desta concepção, aquilo que se pensa é real e não o que parece concreto e é fornecido pelos sentidos. Anacronicamente, o imaginado seria real e não que percebemos.
Uma ideia também presente na filosofia de Platão, com sua distinção entre mundo sensível e inteligível.

A METAFÍSICA NO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO
Aristóteles (em grego Αριστοτέλης) nasceu em Estagira, na Calcídica (384 a.C. - 322 a.C.). Filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, é considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos e criador do pensamento lógico.
Ele está entre os mais influentes filósofos gregos, junto com Sócrates e Platão, que transformaram a filosofia pré-socrática, construindo um dos principais fundamentos da filosofia ocidental. Aristóteles prestou contribuições fundantes em diversas áreas do conhecimento humano, destacando-se: ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural. É considerado por muitos o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental.
Por ter estudado uma variada gama de assuntos, e por ter sido também um discípulo que em muito sentidos ultrapassou seu mestre, Platão, é conhecido também como o filósofo. Aristóteles também foi chamado de o estagirita, por sua terra natal.
(Já na Idade Média, Tomás de Aquino reconciliou as doutrinas aristotélicas com a Teologia Cristã, que dominou a educação superior, até o século XVII). Algumas frases de Aristóteles: “Se é preciso filosofar, filosofemos... Se não é preciso filosofar, filosofemos ainda, para provar que não é preciso filosofar.” “Tudo que age, age para um fim.” “Pensar requer ócio.” “Quem vê as coisas desenvolverem-se desde o princípio, faz delas um juízo mais perfeito.” “A ciência política não faz os homens, e sim torna-os como a natureza os fez.” “Os que levam em conta unicamente poucos pontos, acham fácil formular um juízo.”.
Embora a Ontologia ou Metafísica tenha começado com Parmênides e Platão, costuma-se atribuir seu nascimento a Aristóteles por três motivos principais:
1. Diferentemente de seus dois predecessores, Aristóteles não julga o mundo das coisas sensíveis, ou a Natureza, um mundo aparente e ilusório. Pelo contrário, é um mundo real e verdadeiro cuja essência é, justamente, a multiplicidade de seres e a mudança incessante.
Em lugar de afastar a multiplicidade e o devir como ilusões ou sombras do verdadeiro Ser, Aristóteles afirma que o ser da Natureza existe, é real, que seu modo próprio de existir é a mudança e que esta não é uma contradição impensável. É possível uma ciência teocrática verdadeira sobre a Criação da natureza, do universo e a mudança: a física. Mas é preciso, primeiro, demonstrar que o objeto da física é um ser real e verdadeiro e isso é tarefa da Filosofia Primeira ou da Metafísica.
2. Diferentemente de seus dois predecessores, Aristóteles considera que a essência verdadeira das coisas naturais e dos seres humanos e de suas ações não está no mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde as coisas físicas ou naturais existem e onde vivemos. As essências, diz Aristóteles, estão nas próprias coisas, nos próprios homens, nas próprias ações e é tarefa da Filosofia conhecê-las ali mesmo onde existem e acontecem.
Como conhecê-las? Partindo da sensação até alcançar a intelecção. A essência de um ser ou de uma ação é conhecida pelo pensamento, que capta as propriedades internas desse ser ou dessa ação, sem as quais ele ou ela não seriam o que são. A Metafísica não precisa abandonar este mundo, mas, ao contrário, é o conhecimento da essência do que existe em nosso mundo. O que distingue a ontologia ou Metafísica dos outros saberes (isto é, das ciências e das técnicas) é o fato de que nela as verdades primeiras ou os princípios universais e toda e qualquer realidade são conhecidos direta ou indiretamente pelo pensamento ou por intuição intelectual, sem passar pela sensação, pela imaginação e pela memória.
3. Ao se dedicar à Filosofia Primeira ou Metafísica, a Filosofia descobre que há diferentes tipos ou modalidades de essências ou de ousia. (Οὐσία, pronúncia moderna "ussía") é um substantivo da língua grega formado a partir do feminino do particípio presente do ver "ser", εἶναι, einai. A palavra é, por vezes, traduzida para português como substância ou essência, devido à sua vulgar tradução para latim como substantia ou essentia. É termo utilizado em Filosofia e em Teologia.
Existe a essência dos seres físicos ou naturais (minerais, vegetais, animais, humanos), cujo modo de ser se caracteriza por nascer, viver, mudar, reproduzir-se e desaparecer – são seres em devir e que existem no devir.
Existe a essência dos seres matemáticos, que não existem em si mesmos, mas existem como formas das coisas naturais, podendo, porém, ser separados delas pelo pensamento e ter suas essências conhecidas; são seres que, por essência, não nascem, não mudam, não se transformam nem perecem, não estando em devir nem no devir.
Existe a essência dos seres humanos, que compartilham com as coisas físicas o surgir, o mudar e o desaparecer, compartilhando com as plantas e os animais a capacidade para se reproduzir, mas distinguindo-se de todos os outros seres por serem essencialmente racionais, dotados de vontade e de linguagem. Pela razão, conhecem; pela vontade, agem; pela experiência, criam técnicas e artes. E, finalmente, existe a essência de um ser eterno, imutável, imperecível, sempre idêntico a si mesmo, perfeito, imaterial, conhecido apenas pelo intelecto, que o conhece como separado de nosso mundo, superior a tudo que existe, e que é o ser por excelência: o ser divino.
Se há tão diferentes tipos de essências, se para cada uma delas há uma ciência (física, biologia, meteorologia, astronomia, psicologia, matemática, ética, política, etc.), deve haver uma ciência geral, mais ampla, mais universal, anterior a todas essas, cujo objeto não seja essa ou aquela modalidade de essência, mas a essência em geral. Trata-se de uma ciência teorética que investiga o que é a essência e aquilo que faz com que haja essências particulares e diferenciadas.
Essa ciência mais alta, mais ampla, mais universal, que se ocupa com a essência, que estuda por que há essências e como são as essências investigadas pelas demais ciências, é a Filosofia Primeira, escreve Aristóteles no primeiro livro da Metafísica.
Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga “o Ser enquanto Ser”.
Ao definir a ontologia ou Metafísica como estudo do “Ser enquanto Ser”, Aristóteles está dizendo que a Filosofia Primeira estuda as essências sem diferenciar essências físicas, matemáticas, astronômicas, humanas, técnicas, etc., pois cabe às diferentes ciências estuda-las enquanto diferentes entre si. À Metafísica cabem três estudos:
1. O do Ser Divino, a realidade primeira e suprema da qual todo o restante procura aproximar-se, imitando sua perfeição imutável. As coisas se transformam, diz Aristóteles, porque desejam encontrar sua essência total e perfeita, imutável como a essência divina. É pela mudança incessante que buscam imitar o que não muda nunca. Por isso, o ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo, isto é, aquilo que, sem agir diretamente sobre as coisas, ficando à distância delas, as atrai, é desejado por elas. Tal desejo as faz mudar para, um dia, não mais mudar (esse desejo, diz Aristóteles, explica por que há o devir e por que o devir é eterno, pois as coisas naturais nunca poderão alcançar o que desejam, isto é, a perfeição imutável).
Observamos, assim, que Aristóteles, como Platão, também afirma que a Criação da natureza ou o mundo físico ou humano imitam a perfeição do imutável; porém, diferentemente de Platão, para Aristóteles essa imitação não é uma cópia deformada, uma imagem ou sombra do Ser Verdadeiro, mas o modo de existir ou de ser das coisas naturais e humanas.
A mudança ou o devir são a maneira pela qual a Natureza, ao seu modo, se aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável divino. O ser divino chama-se Primeiro Motor porque é o princípio que move toda a realidade, e chama-se Primeiro Motor Imóvel porque não se move e não é movido por nenhum outro ente, pois, mover significa mudar, sofrer alterações qualitativas e quantitativas, nascer é perecer, e o ser divino, perfeito, não muda nunca;
2. O dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências existentes;
3. O das propriedades ou atributos gerais de todos os seres sejam eles quais forem, graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser particular existente. A essência ou ousia é a realidade primeira e última de um ser, aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou sem o qual deixará de ser o que é. À essência, entendida sob essa perspectiva universal, Aristóteles dá o nome de substância: o substrato ou o suporte permanente de qualidades ou atributos necessários de um ser. A Metafísica estuda a substância em geral.
PRINCIPAIS CONCEITOS DA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA
De maneira muito breve e simplificada, os principais conceitos da Metafísica aristotélica (e que se tornarão as bases de toda a Metafísica ocidental) podem ser assim resumidos:
 Primeiros princípios: são os três princípios que estudamos na lógica, isto é, identidade, não contradição e terceiro excluído. Os princípios lógicos são ontológicos porque definem as condições sem as quais um ser não pode existir nem ser pensado; os primeiros princípios garantem, simultaneamente, a realidade e a racionalidade das coisas;
Causas primeiras: são aquelas que explicam o que a essência é e também a origem e o motivo da existência de uma essência. Causa (para os gregos) significa não só o porquê de alguma coisa, mas também o que e o como uma coisa é o que ela é. As causas primeiras nos dizem o que é, como é, por que é e para que é uma essência.
São quatro as causas primeiras:
1. Causa material, isto é, aquilo de que uma essência é feita, sua matéria (por exemplo, água, fogo, ar, terra);
2. Causa formal, isto é, aquilo que explica a forma que uma essência possui (por exemplo, o rio ou o mar são formas da água; mesa é a forma assumida pela matéria madeira com a ação do carpinteiro; margarida é a forma que a matéria vegetal possui na essência de uma flor determinada, etc.);
3. Causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo que explica como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essência (por exemplo, o ato sexual é a causa eficiente que faz a matéria do espermatozóide e do óvulo receber a forma de um novo animal ou de uma criança; o carpinteiro é a causa eficiente que faz a madeira receber a forma da mesa; o fogo é a causa eficiente que faz os corpos frios tornarem-se quentes, etc.); e,
4. a Causa final, isto é, a causa que dá o motivo, a razão ou finalidade para alguma coisa existir e ser tal como ela é (por exemplo, o bem comum é a causa final da política, a felicidade é a causa final da ação ética; a flor é a causa final da semente transformar-se em árvore; o Primeiro Motor Imóvel é a causa final do movimento dos seres naturais, etc.).
Matéria: é o elemento de que as coisas da Natureza, os animais, os homens, os artefatos são feitos; sua principal característica é possuir virtualidades ou conter em si mesma possibilidades de transformação, isto é, de mudança;
Forma: é o que individualiza e determina uma matéria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares; sua principal característica é ser aquilo que uma essência é num determinado momento, pois a forma é o que atualiza as virtualidades contidas na matéria;
Potência: é o que está contido numa matéria e pode vir a existir, se for atualizado por alguma causa; por exemplo, a criança é um adulto em potência ou um adulto em potencial; a semente é a árvore em potência ou em potencial;
Ato: é a atualidade de uma matéria, isto é, sua forma num dado instante do tempo; o ato é a forma que atualizou uma potência contida na matéria. Por exemplo, a árvore é o ato da semente, o adulto é o ato da criança, a mesa é o ato da madeira, etc. Potência e matéria são conceitos idênticos, assim como forma e ato são idênticos. A matéria ou potência é uma realidade passiva que precisa do ato e da forma, isto é, da atividade que cria os seres determinados;
Essência: é a unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma, unidade que lhe dá um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser necessariamente aquilo que ela é. Assim, por exemplo, um ser humano é por essência ou essencialmente um animal mortal racional dotado de vontade, gerado por outros semelhantes a ele e capaz de gerar outros semelhantes a ele, etc.;
Acidente: é uma propriedade ou atributo que uma essência pode ter ou deixar de ter sem perder seu ser próprio. Por exemplo, um ser humano é racional ou mortal por essência, mas é baixo ou alto, gordo ou magro, negro ou branco, por acidente. A humanidade é a essência essencial (animal, mortal, racional, voluntário), enquanto o acidente é o que, existindo ou não existindo, nunca afeta o ser da essência (magro, gordo, alto, baixo, negro, branco). A essência é o universal; o acidente, o particular;
Substância ou sujeito: é o substrato ou o suporte onde se realizam a matéria-potência, a forma-ato, onde estão os atributos essenciais e acidentais, sobre o qual agem as quatro causas (material, formal, eficiente e final) e que obedece aos três princípios lógico-ontológicos (identidade, não contradição e terceiro excluído); em suma, é o Ser. Aristóteles usa o conceito de substância em dois sentidos: num primeiro sentido, substância é o sujeito individual (Sócrates, esta mesa, esta flor, Maria, Pedro, este cão, etc.); num segundo sentido, a substância é o gênero ou a espécie a que o sujeito individual pertence (homem, grego; animal, bípede; vegetal, erva; mineral, ferro; etc.).
No primeiro sentido, a substância é um ser individual existente; no segundo é o conjunto das características gerais que os sujeitos de um gênero e de uma espécie possuem. Aristóteles fala em substância primeira para referir-se aos seres ou sujeitos individuais realmente existentes, com sua essência e seus acidentes (por exemplo, Sócrates); e em substância segunda para referir-se aos sujeitos universais, isto é, gêneros e espécies que não existem em si e por si mesmos, mas só existem encarnados nos indivíduos, podendo, porém, ser conhecidos pelo pensamento. Assim, por exemplo, o gênero “animal” e as espécies “vertebrado”, “mamífero” e “humano” não existem em si mesmos, mas existem em Sócrates ou através de Sócrates.
O gênero é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos seres de uma mesma espécie. A espécie também é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos indivíduos semelhantes. Assim, o gênero é formado por um conjunto de espécies semelhantes e as espécies, por um conjunto de indivíduos semelhantes. Os indivíduos ou substâncias primeiras são seres realmente existentes; os gêneros e as espécies ou substâncias segundas são universalidades que o pensamento conhece através dos indivíduos;
Predicados: são as oito categorias que temos no estudo da lógica e que também são ontológicas, porque se referem à estrutura e ao modo de ser da substância ou da essência. Em outras palavras, os predicados atribuídos a uma substância ou essência são constitutivos de seu ser e de seu modo de ser, pois toda realidade pode ser conhecida porque possui qualidades (mortal, imortal, finito, infinito, bom, mau, etc.), quantidades (um, muitos, alguns, pouco, muito, grande, pequeno), relacionam-se com outros (igual, diferente, semelhante, maior, menor, superior, inferior), está em algum lugar (aqui, ali, perto, longe, no alto, embaixo, em frente, atrás, etc.), está no tempo (antes, depois, agora, ontem, hoje, amanhã, de dia, de noite, sempre, nunca), realiza ações ou faz alguma coisa (anda, pensa, dorme, corta, cai, prende, cresce, nasce, morre, germina, frutifica, floresce, etc.) e sofre ações de outros seres (é cortado, é preso, é morto, é quebrado, é arrancado, é puxado, é atraído, é levado, é curado, é envenenado, etc.).
As categorias ou predicados podem ser essenciais ou acidentais, isto é, podem ser necessários e indispensáveis à natureza própria de um ser, ou podem ser algo que um ser possui por acaso ou que lhe acontece por acaso, sem afetar sua natureza.
Tomemos um exemplo. Se eu disser “Sócrates é homem”, necessariamente terei que lhe dar os seguintes predicados: mortal, racional, finito, animal, pensa, sente, anda, reproduz, fala, adoece, é semelhante a outros atenienses, é menor do que uma montanha e maior do que um gato, ama, odeia. Acidentalmente, ele poderá ter outros predicados: é feio, é baixo, é diferente da maioria dos atenienses, é casado, conversou com Laques, esteve no banquete de Agáton, esculpiu três estátuas, foi forçado a envenenar-se pelo tribunal de Atenas.
Se nosso exemplo, porém, fosse uma substância genérica ou específica, todos os predicados teriam de ser essenciais, pois o acidente é o que acontece somente para o indivíduo existente e o gênero e a espécie são universais que só existem no pensamento e encarnados nas essências individuais.
Com esse conjunto de conceitos forma-se o quadro da ontologia ou Metafísica aristotélica como explicação geral, universal e necessária do Ser, isto é, da realidade. Esse quadro conceitual será herdado pelos filósofos posteriores, que problematizarão alguns de seus aspectos, estabelecerão novos conceitos, suprimirão alguns outros, desenvolvendo o que conhecemos como Metafísica ocidental.
A Metafísica aristotélica inaugura, portanto, o estudo da estrutura geral de todos os seres ou as condições universais e necessárias que fazem com que exista um ser e que possa ser conhecido pelo pensamento. Afirma que a realidade no seu todo é inteligível ou conhecível e apresenta-se como conhecimento teórico da realidade sob todos os seus aspectos gerais ou universais, devendo preceder as investigações que cada ciência realiza sobre um tipo determinado de ser.
A Metafísica investiga aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres: os três princípios lógico-ontológicos (identidade, não contradição e terceiro excluído) e as quatro causas (material, formal, eficiente e final); aquilo que faz um ser ser necessariamente o que ele é: matéria, potência, forma e ato; aquilo que faz um ser ser necessariamente como ele é: essência e predicados ou categorias; aquilo que faz um ser existir como algo determinado: a substância individual (substância primeira) e a substância como gênero ou espécie (substância segunda).
É isto estudar “o Ser enquanto Ser”. De fato, se o conflito entre certas convicções do senso comum não for tão só aparente, mas real, então algumas dessas convicções estão fadadas a ser falsas, embora possam, não obstante, ser tidas na conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso o que torna excitante, por vezes, a Metafísica; nomeadamente o fato de sermos coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos considerado óbvias.
Contudo, a Metafísica tem de começar por alguma coisa e, como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão provadas, deve começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a confiança com que uma pessoa sustenta suas teorias metafísicas não pode ser maior do que a confiança que deposita nos dados em que aquelas repousam.
Ora, o intelecto do homem não é tão forte quanto a sua vontade, e os homens, geralmente, acreditam no que querem acreditar, particularmente quando essas crenças refletem o mérito próprio entre os homens e o valor de seus esforços. A sabedoria não é, pois, o que os homens buscam em primeiro lugar. Procuram, igualmente, uma justificação para aquilo em que creem seja o que for. Não surpreende, portanto, que os principiantes em Filosofia, e mesmo os que já não são principiantes, tenham uma acentuada inclinação para se apegarem a alguma teoria que os atrai, em face de dados conflitantes, e neguem por vezes a veracidade dos dados, apenas por aquela razão. Tal atitude dificilmente se pode considerar propícia à sabedoria. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas que, dizem elas, querem ardentemente acreditar na teoria do determinismo e que, partindo desse desejo, negam, simplesmente, a verdade de quaisquer dados que com ela colidam. Os dados, por outras palavras, são meramente ajustados à teoria, em vez da teoria aos dados. Mas deve-se insistir ainda que é pelos dados, e não pela teoria, que se terá de começar; pois se não partirmos de pressupostos razoavelmente plausíveis, onde irmos obter a teoria, diferente de se esposar apenas aquilo que os nossos corações desejam'? Mais cedo ou mais tarde poderemos ter de abandonar alguns dos dados do nosso senso comum, mas, ao fazê-lo, será em consideração a certas outras crenças do senso comum que relutamos ainda mais em abandonar e não em deferência pelas teorias filosóficas que nos atraem.
Ao inspirar o termo Metafísica, com sua "filosofia primeira", Aristóteles passou a ser considerado seu pai por muitos autores.
Entre estes, existem aqueles que afirmam que a metafísica começa de fato a se separar da teoria do conhecimento apenas neste momento.
Para Aristóteles, na obra Metafísica, assim chamada após sua morte, pelo seu organizador Andrônico, a essência não está no intelecto, mas nas coisas físicas.
O que não inviabiliza a permanência de um ser eterno, imutável e perfeito internamente em qualquer “ser”.
Esta entidade superior a tudo que existe e que, ao mesmo tempo, só é concreta em um mundo separado do nosso, ele chamou de “ser divino”.
Neste sentido, o “ser divino” seria a realidade suprema e primeira que originou a essência de todas as coisas e que, por isto mesmo, faz com que tudo queira imitá-lo para tentar se aproximar de sua perfeição.
Exatamente por isto, o “ser divino” seria o “primeiro motor”, o principio que move a realidade, transforma tudo, preservando sua essência.
Para Aristóteles, as coisas seriam compostas de matéria, forma e substância.
A matéria seria o elemento material; já a forma seria sua individualidade, suas particularidades.
A substância designaria características gerais, o que existe de comum entre coisas distintas.

Para citarmos um exemplo, poderíamos dizer que no caso de uma mesa, a madeira e o ferro seria a matéria, enquanto seu designer seria a forma e a substância permitiria identificar a mesa como tal, ou seja, seria o que existe de comum com a mesa analisada e outras que possuem forma diferente.
Acontece que, para Aristóteles, as coisas possuem predicados que definem como podemos percebê-las, ou seja, características que decorrem de sua essência ou de acidentes.
Nesta acepção, a essência é o que a coisa é originalmente.
O que pode mudar por acidente, através de alterações da essência, está contido no ato, nas consequências que surgem.
Para citar um exemplo, podemos dizer que a essência de mesa é definida por sua matéria e forma, composta de madeira e ferro e que tem o formato “x”.
Por acidente, esta mesa pode se tornar outro objeto, tal como uma cadeira, o que acontece depois desta transformação é o ato.
Assim, a árvore é o ato da semente e, por sua vez, a potência da semente é poder tornar-se árvore.
O conceito de potência designa aquilo que está contido em matéria, a possibilidade de transformação, sua potencialidade.
Estes conceitos influenciaram fortemente a metafísica cristã católica romana.
Aristóteles busca estabelecer a ciência da sabedoria, investigando as primeiras causas e princípios das coisas.
Todo o homem busca o saber, e a filosofia é a busca, o amor pelo saber, é a ciência que estuda as causas últimas de todas as coisas. É considerada a mãe (base) do conhecimento universal, pois estuda todas as realidades, a totalidade, o universo tomado globalmente. Filosofia é teorética, isto é teórica, e se forma na investigação dos primeiros princípios e causas, e o bem sendo uma das causas, é também sua finalidade.
A natureza da Filosofia vem do entusiasmo, da admiração, da dúvida, e foi para fugir à ignorância, pelo desejo de saber (gerado pelo deleite da visão), que os homens começaram a filosofar. A falta de compreensão, a inquietude, e a falta de certeza a respeito das coisas em si, e tampouco a si mesmas, despertaram nos homens a admiração, agitando seu interesse, para investigar, questionar a realidade. É o desejo de saber por saber, desinteressado, que não busca utilidades, mas a si mesmo. Eis a liberdade da Filosofia, pois existe por si só, por isso é considerada uma aquisição divina, um discurso admirado ou espantado com o mundo.
O nascimento da Filosofia deu-se a partir do momento que o homem entrou na fase do ócio, do lazer, quando não se preocupava com coisas úteis e necessárias, ficando “desocupado”, liberado para ocupar-se das questões do saber, de buscar conhecer o que as coisas são em si e por si mesmas. A liberdade passa a ser uma condição que torna possível a vida do filósofo. Assim, para Aristóteles a metafísica é a ciência mais elevada, suprema, pois ir às causas das causas terá que se chegar numa causa incausada necessariamente, que só pode ser admitida pela existência de um Deus supremo, que pensa e contempla a si mesmo. E a admiração, fonte do filosofar, é uma atitude metafísica.
A METAFÍSICA CRISTÃ
A Metafísica Cristã surgiu a partir da necessidade de converter os intelectuais gregos, para os quais o dogma da revelação divina não bastava como argumento.
O que fez surgirem filósofos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
O primeiro passo foi à incorporação pelo cristianismo do pensamento platônico e aristotélico, em certo sentido, deturpado.
Algo que originou o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo.
O neoplatonismo retomou a filosofia de Platão, revestida com um conteúdo espiritual e místico.
O mundo inteligível das ideias foi transformado em território do “uno”, local da inteligência de Deus, onde todos deveriam aspirar chegar através da meditação e dos dogmas da igreja católica.
Já o mundo sensível foi convertido na cópia imperfeita do divino, um mundo decaído em que os homens se encontram, devendo galgar graus para ascender ao paraíso.
O estoicismo mesclou conceitos de Platão e Aristóteles para afirmar que a realidade do mundo sensível e inteligível está interligada pela razão ou inteligência universal, a qual regula a realidade.
O homem não conseguiria alcançar esta inteligência por ser governado pela vontade e não só pela razão.
Para os estóicos, a porta para alcançar Deus é a aceitação da providência, o homem precisaria aceitar a vontade divina, guiando-se pela moral cristã.
Igualmente mesclada à filosofia de Platão e Aristóteles, o gnosticismo considerava o mundo sensível como resultado da vitória do mal sobre o bem, afirmando que a salvação estaria na libertação da materialidade, para viver em um mundo puramente espiritual.
Estas três tendências influenciaram e alteraram os dogmas cristãos, separando matéria e espírito, inaugurando discussões que dominaram a Idade Média, tal como a natureza do mau e do demônio ou a existência da Santíssima Trindade.
O objetivo destas discussões era óbvio: provar a fé e reafirmar o dogma da revelação, tornando fé e razão compatíveis.
Um problema que só seria resolvido por Descartes no século XVII, trazendo problemas para pensadores como Galileu e Copérnico, antes do advento do racionalismo.
A METAFÍSICA CLÁSSICA
A partir do século XVI, iniciou-se o período denominado como metafísica clássica, marcando o rompimento com as questões medievais envolvendo a fé.
Um momento em que a razão adquiriu autonomia e passou a negar vários conceitos presentes no pensamento dos filósofos da antiguidade.
A definição de “ser” ou “substância”, a qual comportava antes inúmeros tipos, foi limitada a apenas três:1. Substância infinita (Deus). 2. Substância extensa (corpo). 3. Substância pensante (alma).
No caso, negava-se a filosofia aristotélica, mas o pensamento de Platão era confirmado, baseando-se na oposição entre mundo sensível e inteligível.
A substância passou a ser definida como atributo principal das coisas, sendo características da substância extensa o movimento e o repouso.
Estes, por sua vez, determinariam a massa, a figura e o volume da substância pensante.
Como a essência (ente) das substâncias (ser) individuais concretas se distribuiriam em pensantes e extensas, o homem passou a ser visto como substância mista.
Deus seria o único “ente” com apenas uma única substância necessária a sua existência, todos os outros “seres”, precisariam de pelo menos duas substâncias.
Seguindo esta mesma linha de orientação, outro conceito que se tornou importante é o de causa ou causalidade, tomado como aquilo que produz um efeito.
Estão divididos em:
1. Causa eficiente, aquela que é determinada por uma ação anterior e que tem uma consequência.
2. Causa final, aquela que está presente apenas nas substâncias pensantes, não existindo concretamente, por isto, não possuindo necessariamente uma origem, portanto, poderia ser gerado do nada.
A despeito desta subjetividade, a metafísica tentou dar um passo atrás, vinculando a área novamente com a teoria do conhecimento.
A metafísica limitou seu campo de investigação, por definição, aquilo que a capacidade humana, a razão, consegue entender.
O que limitou os estudos metafísicos a natureza humana.
Enquanto a teoria do conhecimento passou a perguntar pelo que é a realidade, a metafísica começou a interrogar até onde podemos conhecer a realidade.
Na visão de muitos, foi inaugurada neste ponto uma crise da metafísica.
A vinculação entre metafísica e teoria do conhecimento, como é óbvio, conduziu a uma crise.
Partindo da teoria do conhecimento, David Hume mostrou que as ideias nada mais são que hábitos mentais que não saem do nada, não são inatas e não possuem inspiração divina.
As ideias seriam fruto de uma associação de sensações, percepções e impressões recebidas pelos órgãos dos sentidos e retidas na memória, sendo esta última alterada por novas percepções.
Assim, as substâncias ou essências seriam apenas imagens da consciência, a causalidade, portanto, poderia ser definida como mero habito da mente estabelecido por percepções sucessivas.
Consequentemente, as questões metafísicas seriam criações artificiais, não possuindo correspondência com a realidade.
O que se tornou tão evidente que filósofos, como Kant, chegaram a afirmar que Hume tinha feito os homens despertar do sonho dogmático.
Hume havia tornado as questões metafísicas vazias de sentido, já que não eram universais, mas inerentes a cada sujeito.
 Entretanto, Kant não concordava inteiramente com Hume, pois considerava conceitos científicos inatos como questões metafísicas.
No caso, conceitos como espaço, tempo, quantidade ou causalidade, eram, para Kant, apenas questões metafísicas, sendo subjetivos e não possuindo uma natureza concreta ou real, embora palpável.
O tempo, por exemplo, não pode ser tocado, assim não possui materialidade concreta, mas seus efeitos podem ser sentidos, remetendo a investigação metafísica.
Podemos notar que, mesmo quando um objeto parece ser de natureza puramente científica, a Metafísica ressurge das cinzas como uma fênix.
Um conceito que iria originar, no inicio do século XX, a chamada ontologia contemporânea.
Os filósofos têm discordado acerca da natureza da metafísica. Aristóteles e os medievais dão-nos duas explicações diferentes da disciplina. Por vezes caracterizam-na como a tentativa de identificar as primeiras causas, em particular deus ou o motor imóvel; por vezes como a muito geral ciência do ser enquanto ser. Acreditavam, contudo, que estas duas caracterizações identificam uma só disciplina. Os racionalistas dos séculos XVII e XVIII, por contraste, alargaram o âmbito da metafísica. Entenderam que esta se ocupava não só da existência e natureza de deus, mas também da distinção entre mente e corpo, da imortalidade da alma e do livre-arbítrio.
Os empiristas e Kant eram críticos quer quanto à concepção aristotélica da metafísica quer quanto à concepção racionalista, argumentando que estas procuram transcender os limites do conhecimento humano; mas mesmo Kant pensou que pode haver um tipo legítimo de conhecimento metafísico. O seu objetivo é delinear as estruturas mais gerais que suportam o nosso pensamento acerca do mundo. Esta concepção kantiana da metafísica continua a gozar de alguma popularidade entre os filósofos contemporâneos, que insistem que a metafísica tem por objetivo a caracterização do nosso esquema conceitual ou enquadramento conceitual. Estes filósofos concordam tipicamente com Kant em que a estrutura do mundo nos é em si própria inacessível e que os metafísicos têm de se contentar em descrever a estrutura do nosso pensamento acerca do mundo.
A defesa desta concepção kantiana de metafísica não é, contudo, particularmente impressionante; pois se há problemas em caracterizar o mundo tal como é, devia haver problemas semelhantes em caracterizar o nosso pensamento acerca do mundo. Mas se concordamos que as metafísicas aristotélica ou racionalista não estão condenadas à partida, temos de conceder que as duas concepções sugerem tópicos muito diferentes para um manual de metafísica. Neste livro, seguiremos a caracterização aristotélica da metafísica como disciplina que se ocupa do ser enquanto ser. Esta caracterização dá lugar à tentativa de identificar os tipos ou categorias mais gerais em que se subsumem as coisas, e delinear as relações que se verificam entre estas categorias.
A NATUREZA DA METAFÍSICA ALGUMAS REFLEXÕES HISTÓRICAS
Não é fácil dizer o que a metafísica é. Se se olha para as obras de metafísica encontra-se caracterizações bastante diferentes da disciplina. Por vezes estas caracterizações procuram ser descritivas, dar-nos uma explicação daquilo que fazem os filósofos a quem se chama "metafísicos". Por vezes são normativas; representam tentativas de identificar o que os filósofos deviam estar a fazer quando fazem metafísica. Mas, descritivas ou normativas, estas caracterizações dão explicações tão diferentes do objeto de estudo e metodologia adequados à metafísica que é provável que o observador imparcial pense que têm de caracterizar disciplinas diferentes. O desacordo acerca da natureza da metafísica prende-se certamente com a sua longa história. Os filósofos têm feito ou procurado fazer algo a que têm chamado "metafísica" durante mais de 2000 anos; e o resultado dos seus esforços tem sido explicações com uma ampla diversidade de objetos de estudo e de abordagens. Mas a dificuldade de identificar um único objeto de estudo e metodologia da metafísica não é simplesmente imputável à longa história da disciplina. Mesmo nas suas origens há ambiguidade acerca do que a metafísica supostamente é, ao certo.
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA METAFÍSICA
O termo "Metafísica", como nome da disciplina, é retirado do título de um dos tratados de Aristóteles. O próprio Aristóteles nunca se referiu ao tratado por esse nome; este foi conferido por pensadores posteriores. Aristóteles chamou à disciplina em causa no tratado filosofia primeira ou teologia, e sabedoria ao conhecimento que é o objetivo da disciplina. Ainda assim, o uso subsequente do título Metafísica torna razoável supor que aquilo a que chamamos "metafísica" é o gênero de coisa que se faz nesse tratado. Infelizmente, Aristóteles não nos dá uma única explicação do que ali faz. Em alguns contextos, diz-nos que aquilo que procura no tratado é um conhecimento de primeiras causas. 1  Isto sugere que a metafísica é uma das disciplinas departamentais, uma disciplina com um objeto de estudo distinto do que é objeto de consideração de qualquer outra disciplina. Que objeto de estudo é identificado pela expressão "primeiras causas"? Talvez uma série de coisas diferentes; mas aqui é central deus ou o motor imóvel. Pelo que aquilo que depois se veio a chamar "Metafísica" é uma disciplina que se ocupa de Deus, e Aristóteles fala-nos bastante acerca da disciplina. Diz-nos que é uma disciplina teórica. Ao contrário das diversas artes que se ocupam da produção e das diversas ciências práticas (ética, economia, política) cujo fim é orientar a ação humana, a metafísica tem por objetivo a apreensão da verdade por si própria. Neste aspecto, concorda com as ciências matemáticas e as diversas ciências físicas. As primeiras têm por objeto de estudo quantidades (quantidades discretas no caso da aritmética e quantidades contínuas no caso da geometria), e as segundas ocupam-se da natureza e estrutura das substâncias imateriais ou físicas (tanto as vivas como as inanimadas) que compõem o mundo natural. A metafísica, por contraste, tem por objeto de estudo a substância imaterial.  E a relação entre a disciplina e o seu objeto de estudo dá à metafísica um estatuto intrigante. Ao contrário das outras disciplinas, a metafísica não pressupõe simplesmente a existência do seu objeto de estudo; tem na verdade de provar que há uma substância imaterial que seja o seu objeto. Pelo que o projeto de provar que há um motor imóvel fora do mundo da natureza faz parte da própria metafísica; mas uma vez que Aristóteles pensa que só temos uma disciplina distinta quando temos um objeto de estudo distinto, está comprometido com a ideia de que os metafísicos podem estar seguros de que há uma disciplina na qual se empenharem desde que sejam bem-sucedidos em levar a cabo um dos projetos no programa da disciplina.
Mas Aristóteles não se satisfaz em descrever a metafísica como a investigação de primeiras causas. Também nos diz que é a ciência que estuda o ser enquanto ser. À medida que se expande esta caracterização, a metafísica acaba por não ser outra disciplina departamental com um objeto de estudo próprio. É, ao invés, uma ciência universal, que toma em consideração todos os objetos que há. Nesta caracterização, pois, a metafísica examina os itens que constituem o objeto de estudo das outras ciências. O que a metafísica tem de distinto é o modo como examina esses objetos; examina-os a partir de uma perspectiva particular, da perspectiva de serem seres, ou coisas que existem. Pelo que a metafísica considera as coisas como seres ou existentes e procura especificar as propriedades ou aspectos que estas exibem apenas na medida em que são seres, ou existentes. Consequentemente, procura compreender não só o conceito de ser, mas também conceitos muito gerais, como a unidade ou a identidade, a diferença, a semelhança e a dissemelhança, que se aplicam a tudo o que há. Também central para a metafísica, entendida como ciência universal, é a delineação daquilo a que Aristóteles chamou categorias. Estas são os tipos mais elevados ou mais gerais em que as coisas se subsumem. Supõe-se que a metafísica deve identificar esses tipos mais elevados, especificar os aspectos que são peculiares a cada categoria, e identificar as relações que ligam entre si as diferentes categorias; e ao fazê-lo, o metafísico dá-nos supostamente um mapa da estrutura de tudo o que há.
Encontramos então duas explicações diferentes do que é a metafísica, em Aristóteles. Por um lado, há a ideia de uma disciplina departamental ocupada com a identificação das primeiras causas, em particular, Deus; e, por outro lado, há a ideia de uma disciplina universal ou perfeitamente geral cuja tarefa é considerar as coisas pela perspectiva de que se trata de seres ou existentes, e dar uma caracterização geral de todo o domínio do ser. À primeira vista parece haver uma tensão entre estas duas concepções da metafísica. É difícil compreender como uma única disciplina pode ser ao mesmo tempo departamental e universal. O próprio Aristóteles está aqui ciente da aparência de tensão, e esforça-se por mostrar que a tensão é apenas aparente.  Por outro lado, sugere que uma ciência de primeiras causas irá identificar as causas subjacentes às características primárias das coisas, as características que são pressupostas por quaisquer outras características que as coisas possam exibir; e Aristóteles parece disposto a afirmar que visto que o ser ou existência de uma coisa é primário neste sentido, a ciência que estuda as primeiras causas será apenas a ciência que investiga o ser enquanto ser. Por outro lado, parece defender que qualquer disciplina que examine qualquer coisa na medida em que é um ser irá numerar deus entre os itens que procura caracterizar.
Na tradição aristotélica medieval, deparamo-nos continuamente com esta caracterização dual da metafísica; e, como Aristóteles, os medievais acreditavam que as duas concepções da metafísica se realizam numa única disciplina, que procura simultaneamente delinear a estrutura categorial da realidade e estabelecer a existência e natureza da substância divina. Mas quando encontramos os textos metafísicos dos racionalistas seiscentistas e setecentistas do continente, deparamo-nos com uma concepção da metafísica que alarga o âmbito da empresa metafísica. Embora tenham rejeitado muitos detalhes da Metafísica de Aristóteles concordaram que o que está em causa ao fazer-se Metafísica é a identificação e caracterização dos tipos mais gerais de coisas que há, e concordaram que uma parte central desta tarefa está na referência à substância divina e ao seu papel causal. Não obstante, veio-se a considerar como objetos adequados da investigação metafísica tópicos que não figuram como itens no programa metafísico aristotélico. Para Aristóteles, o exame dos objetos físicos mutáveis, a delineação do hiato entre os seres vivos e os inanimados e a identificação do que é peculiar aos seres humanos são tudo coisas que se deve levar a cabo no contexto da ciência natural, ou física, e não na metafísica.
Mas os racionalistas, confrontados com uma paisagem intelectual em que a física aristotélica é substituída pela explicação mais matemática e mais experimental da nova física, pensaram que estas questões eram metafísicas. Do seu ponto de vista, a metafísica não se ocupava simplesmente da existência e natureza de deus, mas da distinção entre a mente e o corpo, a sua relação nos seres humanos e a natureza e extensão do livre-arbítrio.
Uma pessoa formada na tradição aristotélica ficaria intrigada com este novo uso do termo "Metafísica" e provavelmente faria a acusação de que, nas mãos dos racionalistas, o que supostamente era uma única disciplina com um único objeto de estudo acaba por ser o exame de uma mistura confusa de tópicos inter-relacionados. Evidentemente, os racionalistas eram sensíveis a este tipo de acusação e procuraram dar uma justificação para o redesenhar das fronteiras disciplinares no interior da filosofia. O que daí surgiu por último foi um mapa geral do terreno metafísico.  A afirmação é a de que a metafísica tem um único objeto de estudo; trata-se do ser. Pelo que o metafísico procura dar uma explicação da natureza do ser; mas há uma diversidade de perspectivas a partir das quais se pode dar essa explicação, e a estas diferentes perspectivas correspondem diferentes sub disciplinas dentro da Metafísica. Em primeiro lugar, pode-se examinar o ser a partir da perspectiva de que é precisamente isso, ser. Como isto representa a perspectiva mais geral a partir da qual se pode considerar o ser, a divisão da metafísica que considera o ser a partir desta perspectiva foi designada metafísica geral. Mas os racionalistas insistiram que também podemos examinar o ser a partir de uma diversidade de perspectivas mais especializadas. Quando o fazemos, damos continuidade a uma ou outra divisão daquilo a que os racionalistas chamaram metafísica especial.
Assim, podemos considerar o ser como o encontramos nas coisas mutáveis; podemos, isto é, considerar o ser a partir da perspectiva da sua mutabilidade. Fazê-lo é empenhar-se na Cosmologia. Podemos, também, considerar o ser como o encontramos em seres racionais como nós. Considerar o ser a partir desta perspectiva é dar continuidade a uma divisão da Metafísica especial a que os racionalistas chamam psicologia racional. Por fim, podemos examinar o ser como se mostra no caso do divino, e examinar o ser a esta luz é empenhar-se na Teologia Natural. É bastante claro que as noções racionalistas de Metafísica Geral e Teologia Natural correspondem às concepções aristotélicas de Metafísica como ciência verdadeiramente universal, que estuda o ser enquanto ser, e como disciplina departamental, que se ocupa das primeiras causas; ao passo que a afirmação de que a Metafísica incorpora a cosmologia e a psicologia racional como divisões exprime o âmbito novo e alargado que o esquema racionalista associa à Metafísica.
Mas não era apenas no objeto de estudo que a Metafísica racionalista diferia da de Aristóteles. A abordagem de Aristóteles das questões metafísicas foi cautelosa. Ao delinear as categorias, Aristóteles tentou permanecer fiel à nossa concepção pré-filosófica do mundo. Do modo como ele via as coisas, as entidades inteiramente reais ou metafisicamente básicas são os objetos familiares do senso comum, coisas como cavalos individuais e seres humanos individuais. E mesmo na sua explicação de deus ou do motor imóvel, estava ansioso por mostrar a continuidade entre a sua explicação filosófica e as nossas crenças pré-filosóficas acerca da estrutura causal do mundo. O resultado foi uma Metafísica relativamente conservadora. As teorias metafísicas dos racionalistas, por contraste, eram tudo menos conservadoras. Nas suas mãos, a Metafísica resulta em sistemas especulativos abstratos, muito afastados de qualquer imagem do mundo que seja reconhecidamente de senso comum. Aqui, basta percorrer superficialmente as palavras de um pensador como Espinosa ou Leibniz para apreciar a extravagância da Metafísica racionalista.
A natureza altamente abstrata e especulativa da metafísica racionalista fez dela um alvo natural para as críticas dos pensadores empiristas. Os empiristas insistiram que qualquer afirmação de conhecimento tem de se justificar por referência à experiência sensorial; e argumentaram que visto que nenhuma experiência poderia alguma vez justificar as afirmações que constituíam os sistemas racionalistas, as afirmações dos racionalistas, de que davam conhecimento científico da natureza da realidade, eram espúrias. 6 Na verdade, os empiristas afirmaram amiúde a proposição mais forte de que as afirmações características da metafísica racionalista não tinham significado. Os empiristas defendiam que todas as nossas representações conceituais derivam do conteúdo da nossa experiência sensorial. Consequentemente, insistiram que uma afirmação tem conteúdo cognitivo genuíno ou significado só se os termos que usa são susceptíveis de análise ou explicação em termos de conteúdos puramente sensoriais. Como as afirmações dos metafísicos racionalistas não passam este teste, os empiristas concluíram que eram meros sons sem sentido.
No trabalho de Kant, encontramos uma crítica posterior à empresa metafísica. Na explicação de Kant, o conhecimento humano implica a interação de conceitos inatos às faculdades cognitivas humanas com os dados brutos da experiência sensorial. Os dados sensoriais são os efeitos, nas nossas faculdades subjetivas sensoriais, de um mundo exterior a essas faculdades. Os dados são estruturados ou organizados por meio de conceitos inatos, e o resultado é um objeto de conhecimento. Pelo que aquilo a que chamamos "objeto de conhecimento" não é uma coisa exterior e independente da nossa maquinaria cognitiva; é o produto da aplicação de estruturas conceituais inatas aos estados subjetivos das nossas faculdades sensoriais. O mundo que produz esses estados subjetivos é algo que, como é em si próprio, nos é inacessível; apreendemo-lo apenas como nos afeta, apenas como nos aparece. Um objeto de conhecimento, então, requer os conteúdos sensoriais dos empiristas; mas requer mais do que isso. Os conteúdos têm de ser unificados e organizados por estruturas conceituais que não têm origem na nossa experiência sensorial. Kant, contudo, quer insistir que tal como os conteúdos sensoriais só constituem um objeto de conhecimento quando são estruturados pelos conceitos inatos, as estruturas conceituais inatas só produzem um objeto de conhecimento quando se aplicam aos conteúdos sensoriais, a que dão princípios de unidade e organização.
Como Kant viu a Metafísica, quer a variante racionalista quer a aristotélica, representa a tentativa de conhecer o que ultrapassa o âmbito da experiência sensorial humana. Procura responder a questões para as quais a experiência sensorial é incapaz de dar respostas, questões acerca da imortalidade da alma, da existência de deus e do livre-arbítrio. Promete-nos conhecimento acerca destas matérias. Na tentativa de proporcionar o conhecimento prometido, contudo, o metafísico usa as estruturas conceituais que subjazem a formas menos controversas de conhecimento, estruturas como as que entram no discurso acerca de substâncias, causalidade e acontecimentos. Mas uma vez que as estruturas relevantes só produzem conhecimento quando aplicadas aos dados brutos da experiência sensorial, o uso que o filósofo faz dessas estruturas para responder às questões perenes da metafísica nunca resulta no conhecimento que o metafísico nos promete. Dado o modo como a nossa maquinaria cognitiva funcionam as condições requeridas para o conhecimento nunca podem ser satisfeitas no caso da metafísica. As afirmações que o metafísico quer fazer ultrapassam os limites do conhecimento humano. Consequentemente, nunca pode haver conhecimento genuinamente científico na metafísica.
Para dar ênfase a este aspecto da Metafísica tradicional, Kant chama-lhe Metafísica transcendente. Kant contrasta a metafísica transcendente com aquilo a que chama de metafísica crítica. A metafísica crítica, segundo nos diz, é um empreendimento legítimo, perfeitamente respeitável. Enquanto a Metafísica transcendente procura caracterizar uma realidade que transcende a experiência sensorial, a Metafísica crítica tem por tarefa a delineação dos aspectos mais gerais do nosso pensamento e conhecimento. Procura identificar os conceitos mais gerais que entram na nossa representação do mundo, as relações que se verificam entre estes conceitos e os pressupostos do seu uso objetivo. O projeto definido pela Metafísica crítica é precisamente o projeto que o próprio Kant considera levar a cabo quando nos dá a sua própria explicação das condições do conhecimento humano.
A concepção de Kant, de um empreendimento metafísico cuja tarefa é identificar e caracterizar os aspectos mais gerais do nosso pensamento e experiência continua a encontrar defensores nos nossos dias.8 Estes filósofos dizem-nos que a metafísica é um empreendimento descritivo cujo objetivo é a caracterização do nosso esquema conceitual ou enquadramento conceitual. Do modo como estes filósofos veem as coisas, qualquer pensamento ou experiência que possamos ter envolve a aplicação de um só corpo unificado de representações. Esse corpo de representações constitui algo como uma imagem de como as coisas são; é um tipo de história que contamos acerca do mundo e do nosso lugar nele. A história tem uma estrutura característica: está organizada por meio de conceitos muito gerais, e o uso desses conceitos é regulado por princípios (amiúde chamados "princípios de enquadramento"). O objetivo da metafísica é simplesmente delinear essa estrutura nos seus contornos mais gerais.
Os filósofos que subscrevem esta ideia de esquema conceitual ou enquadramento conceitual não concordam todos entre si quanto ao estatuto de que goza a nossa imagem do mundo. Embora não subscrevam os detalhes da própria perspectiva de Kant sobre o conhecimento humano, alguns defensores da ideia de esquema conceitual concordam com Kant em que há uma única estrutura imutável que subjaz a tudo o que se possa chamar conhecimento ou experiência humanos. Outros enfatizam o caráter dinâmico e histórico do pensamento humano e falam de enquadramentos conceituais alternativos. Veem grandes mudanças conceituais, como a revolução científica em que a teoria da relatividade tomou o lugar da mecânica newtoniana, como exemplos em que um esquema conceitual é rejeitado a favor de uma imagem do mundo nova e diferente. Para pensadores do gênero anterior, a metafísica tem um objeto de estudo estável e imutável: a única maneira peculiarmente humana de representar o mundo; para os últimos, a tarefa da metafísica é comparativa: procura mostrar as diferentes formas presentes nos esquemas alternativos que desempenharam historicamente um papel nas nossas tentativas de representar o mundo.
Os filósofos de ambos os gêneros opõem-se inequivocamente aos que defendem uma concepção mais tradicional, pré-kantiana, da metafísica. Os filósofos que levam a sério a noção de esquema conceitual considerarão que a metafísica se ocupa da nossa maneira ou maneiras de representar o mundo. Quer limitem o objeto de estudo da Metafísica aos itens do programa aristotélico quer sigam os racionalistas ao alargar o âmbito da Metafísica para incluir tópicos como o problema da mente-corpo, a imortalidade da alma e o livre-arbítrio, os filósofos que veem a metafísica em termos pré-kantianos entendem que a sua tarefa é dar uma explicação da natureza e estrutura do próprio mundo e do universo. Uma investigação da estrutura do pensamento humano é, contudo, algo muito diferente de uma investigação da estrutura do mundo acerca de que o pensamento é. Obviamente, se se acredita que a estrutura do nosso pensamento reflete ou espelha a estrutura do mundo, então poder-se-á afirmar que as duas investigações têm de ter o mesmo resultado. Mas os filósofos que são atraídos pelo discurso acerca de esquemas conceituais, tipicamente, não aceitam isto. Afirmam que a metafísica tem por objeto de estudo a estrutura do nosso esquema conceitual, ou esquemas, precisamente porque, como Kant, pensam que o mundo tal como realmente é, é algo a que não temos acesso.
Por que pensam isto? Porque concordam com Kant em que o nosso pensamento acerca do mundo é sempre mediado pelas estruturas conceituais em termos das quais representam esse mundo. No seu entender, para pensar em qualquer coisa exterior às minhas faculdades cognitivas, tenho de aplicar conceitos que representam a coisa de uma ou outra maneira, pertencendo a algum tipo ou caracterizada de algum modo; mas, então, o que apreendo não é o objeto como realmente é, independentemente do meu pensamento acerca dele. O que apreendo é o objeto tal como o conceitualizo ou represento, pelo que o objeto do meu pensamento é algo que, pelo menos em parte, é o produto do aparelho conceitual ou representacional que ponho em funcionamento ao pensar. O que tenho não é a coisa como é em si, mas a coisa tal como figura na história que dela narro ou na imagem que dela construo.
Alguns dos que invocam a ideia de esquema conceitual (podíamos chamar-lhes esquemistas conceituais) vão mais além e afirmam que a própria ideia de um objeto separado e independente do esquema conceitual por meio do qual formamos as nossas representações é incoerente. Nesta perspectiva radical, tudo o que há é o esquema conceitual, ou esquemas. Nada mais há do que as histórias que contamos, as imagens que construímos. Aquilo a que chamamos a existência de um objeto é apenas a questão de algo figurar numa história; e aquilo a que chamamos a verdade das nossas crenças é apenas uma questão das diversas componentes de uma história encaixarem umas nas outras ou de serem coerentes entre si.
Esta versão mais radical da perspectiva do esquema conceitual é uma versão daquilo a que se tem chamado idealismo, e é uma perspectiva extremamente difícil de articular coerentemente. Se defendermos que nada há senão as histórias que os seres humanos constroem, o que diremos então dos seres humanos que supostamente as constroem? Se estes estão realmente ali a construí-las, então não é verdade que nada haja além das histórias que se constrói; e não é verdade que existir seja apenas ser personagem numa história. Se, por outro lado, nós, seres humanos, formos apenas outros tantos personagens nas histórias, será então verdade que há algumas histórias para contar? Ou será o fato de se construir todas estas histórias apenas mais uma história? E será em si esta nova história (a história de que as histórias originais são contadas) apenas mais uma história?
Como sugeri, nem todos os esquemistas conceituais subscrevem a perspectiva mais radical que temos vindo a discutir; mas mesmo o esquemista que concede que a ideia de um item que existe independentemente de um esquema conceitual é coerente negará que quaisquer objetos desses, tal como poderão efetivamente existir, possam constituir os objetos do estudo metafísico. Quaisquer itens desse gênero insistirão os esquemistas, são apreendidos apenas por meio das estruturas conceituais que pomos em funcionamento na representação que fazemos desses itens. Estas estruturas constituem um tipo de cortina que nos impede o acesso às coisas como realmente são. Consequentemente, mesmo o esquemista conceitual moderado negará que seja possível fazer o que o metafísico tradicional quer fazer, dar conhecimento da estrutura última da realidade; afirmará que a haver um empreendimento com a generalidade, sistematicidade e exaustividade que os filósofos têm querido reivindicar para a Metafísica, esse empreendimento não pode consistir seja no que for que ultrapasse a caracterização da estrutura mais geral do nosso esquema conceitual, ou esquemas.
Que resposta darão os metafísicos tradicionais a esta perspectiva neokantiana? Muito provavelmente, argumentarão que se o esquemista conceitual tem razão ao negar que o mundo como realmente é pode ser objeto de investigação filosófica séria, então o esquemista não tem razão ao supor que um esquema conceitual pode sê-lo. A premissa central no argumento do esquemista contra a Metafísica tradicional é a afirmação de que a aplicação de estruturas conceituais na representação das coisas nos impede o acesso genuíno a essas coisas; mas o defensor da Metafísica tradicional chamará a atenção para o fato de termos de usar conceitos na nossa caracterização daquilo a que o esquemista chama enquadramento conceitual, e concluirá que, segundo os próprios princípios do esquemista, isso implica que não se pode caracterizar a natureza e estrutura de um esquema conceitual. Pelo que os metafísicos tradicionais argumentarão que se a sua concepção da metafísica é problemática, também a do esquemista o é. Mas os metafísicos tradicionais insistirão que há aqui uma lição mais profunda. A lição é que há algo de autoderrotante na explicação que o esquemista conceptual dá de representação conceitual. Se o esquemista conceitual tem razão ao afirmar que a actividade da representação conceptual nos impede de apreender seja o que for que procuremos representar, então por que haveríamos de levar a sério as afirmações do esquemista acerca da representação conceitual? Essas afirmações, afinal de contas, são apenas outras tantas representações conceituais; mas, então, longe de revelar a natureza da actividade de representação conceitual, as afirmações parecem impedir a nossa apreensão daquilo acerca do qual essas afirmações supostamente são, a atividade de representação conceitual.
Os metafísicos tradicionais passarão a insistir que conseguimos pensar e falar acerca das coisas, as coisas como realmente são e não apenas como figuram nas histórias que contamos. Insistirão que a própria ideia de pensar acerca das coisas ou de referi-las pressupõe que há relações que ligam os nossos pensamentos e palavras às coisas, independentemente da mente e independentemente da linguagem, em que pensamos e acerca de que falamos; e insistirão que longe de nos impedir o acesso às coisas, os conceitos que usamos ao pensar são os veículos para apreender as coisas a que se aplicam. Não são cortinas ou barreiras entre nós e as coisas; são, pelo contrário, os nossos caminhos para nos levar aos objetos, os nossos modos de obter acesso a eles. E os metafísicos tradicionais argumentarão que não há qualquer razão para supor que tem de ser de outra forma com os conceitos que os metafísicos tradicionais usam na sua tentativa de nos dar uma explicação acerca do que há e da sua estrutura geral. Concederão que os metafísicos se podem enganar, que pode haver afirmações metafísicas falsas; mas insistirão que o perigo de falsidade não é mais grave aqui do que em qualquer outra disciplina em que procuramos dizer como as coisas são. Pode ser difícil dar uma caracterização verdadeira da natureza da realidade, mas isso não significa que é impossível.
Os defensores de uma concepção kantiana da metafísica insistirão que as questões à volta deste debate são mais complexas e mais difíceis do que o metafísico tradicional sugere; e que embora a início nos possamos sentir solidários com o metafísico tradicional, temos de conceder que este debate acerca da metodologia adequada à metafísica depende da questão muito mais vasta da relação entre o pensamento e o mundo. Esta questão dirige-se ao núcleo de qualquer caracterização do ser e conta como metafísica segundo quaisquer critérios. É, contudo, uma questão de tal maneira importante que não pode ser resolvida nos parágrafos introdutórios de um livro sobre metafísica. A caracterização da relação entre o nosso pensamento ou linguagem e o mundo requer um tratamento separado e extenso; e o último capítulo deste livro será dedicado a essa questão. Aí, examinaremos detalhadamente o desafio que os filósofos de inclinação kantiana antirrealistas, como amiúde se lhes chama apresentam à explicação tradicional da relação entre o pensamento e o mundo. Entretanto, contudo, precisamos de uma concepção de metafísica para nos orientarmos; e a estratégia será assumir, provisoriamente, a abordagem tradicional pré-kantiana.
A METAFÍSICA CATEGORICAL
O objetivo será caracterizar a natureza da realidade, dizer como as coisas são. Como vimos, diferentes tradições associam objetos de estudo diferentes a este projeto. Na tradição aristotélica, há a ideia de uma ciência que estuda o ser enquanto ser. Mesmo que haja uma única ciência que corresponda às duas ideias, estas parecem diferentes, pelo menos a início. A ideia de uma ciência geral que estuda os seres a partir da perspectiva de que são seres corresponde àquilo a que os racionalistas chamavam metafísica geral; e uma tarefa central sugerida pela ideia de uma ciência de primeiras causas corresponde à tarefa associada com a divisão da metafísica especial que os racionalistas designavam teologia natural; e temos as duas outras divisões da metafísica especial a Cosmologia, que dá uma caracterização do mundo material, mutável, e a psicologia racional, que lida, entre outras coisas, com o problema da mente-corpo e, supostamente, com o problema do livre-arbítrio.
Muitos livros introdutórios de metafísica estão de acordo com o mapa racionalista da disciplina. Na verdade, focam-se nas questões a que os racionalistas chamavam metafísica especial. Assim, questões acerca da existência e natureza de deus, questões acerca da natureza dos seres humanos e do problema da mente-corpo, e questões acerca do livre-arbítrio, ocuparão o primeiro plano. Esta estratégia é perfeitamente adequada. Desde o século XVII que se designa todas estas questões por metafísica. Uma estratégia diferente para construir um texto introdutório em metafísica é, contudo, igualmente defensável. Esta estratégia limita, grosso modo, os tópicos a ser discutidos aos que se subsumem na rubrica da ciência aristotélica do ser enquanto ser, ou da ciência racionalista da metafísica geral.
Esta maneira de abordar a metafísica é sustentada por diversas considerações. Os filósofos contemporâneos dividem a filosofia de maneira que não respeitam as fronteiras disciplinares da explicação racionalista. Os tópicos que eram centrais nas diversas divisões daquilo a que os racionalistas chamavam metafísica especial são agora discutidos em subdisciplinas da Filosofia que não se ocupam essencial ou exclusivamente de tópicos metafísicos. O foco da teologia natural, por exemplo, era a existência e natureza de deus; agora lida-se tipicamente com esse conjunto de questões naquilo a que chamamos Filosofia da Religião, uma subdisciplina da Filosofia que trata um âmbito muito mais vasto de questões do que a antiquada teologia natural. Lida com questões epistemológicas acerca da racionalidade da crença religiosa em geral, assim como com a racionalidade de crenças religiosas particulares, questões acerca da relação entre a religião e a ciência, e questões acerca da relação entre a religião e a moralidade. Os filósofos da religião chegam a discutir questões que faziam parte daquilo a que os racionalistas chamavam psicologia racional, questões acerca da sobrevivência pessoal e da imortalidade. Outras questões que se discutia na psicologia racional subsumem-se agora naquilo a que chamamos filosofia da mente; mas apesar de os filósofos da mente se preocuparem com questões metafísicas acerca da existência e natureza da mente, também se preocupam com muitas outras coisas. Levantam questões epistemológicas acerca do conhecimento dos nossos estados mentais e dos de outras pessoas; e passam muito tempo a tentar clarificar a natureza da explicação na psicologia e nas ciências cognitivas. Por vezes, encontramos os filósofos da mente a levantar questões acerca do livre-arbítrio, mas este problema é provavelmente discutido noutra parte diferente da filosofia a que se chama teoria da ação. Os filósofos contemporâneos usam tipicamente o termo "metafísica" para se referirem a uma divisão da filosofia diferente de cada uma destas divisões; e quando o fazem, aquilo de que falam é algo não muito distante daquilo a que os racionalistas chamavam metafísica geral e a que Aristóteles se referia como a ciência que estuda o ser enquanto ser.
Pelo que o modo como se organiza os textos introdutórios em metafísica não reflete o modo como os filósofos hoje usam tipicamente o termo "metafísica". Uma consequência é que aquelas que são as questões centrais naquilo a que hoje em dia chamamos metafísica não são muito discutidas de um modo introdutório. E isso é lamentável, visto que essas questões são tão fundamentais como quaisquer outras questões filosóficas. Pelo que há um argumento a favor de um texto introdutório de metafísica que investigue o ser enquanto ser; mas há outro. A série de que este livro faz parte terá textos de filosofia da religião e de filosofia da mente; nestes volumes abordar-se-á tópicos como a existência e natureza de deus e o problema da mente-corpo. O volume de metafísica deve focar-se em questões diferentes, e fá-lo-á. Focar-se-á nas questões que surgem quando tentamos dar uma explicação geral da estrutura de tudo o que há.
Mas que questões são essas? Ao discutir a concepção aristotélica da metafísica como disciplina perfeitamente geral, afirmei que um objetivo central de tal disciplina é a identificação e caracterização das categorias em que se subsumem as coisas. Seria exato afirmar que isto é o que a Metafísica, como entendida nos dias de hoje, procura alcançar. Mas o que é ao certo identificar as categorias em que se subsumem as coisas? Como vimos, Aristóteles pensava que as categorias são os tipos mais elevados ou gerais sob os quais se pode classificar as coisas. Isto sugere que o que os metafísicos fazem é pegar em todas as coisas que há e dispô-las segundo os tipos mais gerais em que se subsumem. Segundo Aristóteles, as categorias em que algo se subsume permitem-nos dizer o que a coisa é. Pareceria, então, que a identificarem as categorias mais elevadas, os metafísicos deviam procurar as respostas mais gerais à pergunta "O que é?" Uma maneira pela qual pareceriam fazê-lo seria tomar um objeto familiar, como Sócrates, e colocar a questão "O que é ele?" A resposta óbvia é "um ser humano". Mas embora "ser humano" discrimine um tipo em que Sócrates se subsume, há respostas mais gerais à pergunta "Que tipo de coisa é Sócrates?" Ele é, afinal de contas, um primata, um mamífero, um vertebrado e um animal. Identificar a categoria a que Sócrates pertence é identificar o fim ou a paragem final nesta lista de respostas cada vez mais gerais à pergunta "O que é?" E quando temos isso? A resposta canônica é que chegamos à categoria de uma coisa quando chegamos a uma resposta tal à pergunta "O que é?" que a única reposta mais geral seja dada por um termo como "entidade", "ser", "coisa" ou "existente", que se aplica a tudo o que há. Aristóteles pensou que a resposta relevante para Sócrates é dada pelo termo "substância", pelo que Aristóteles entendeu que substância era a categoria em que Sócrates e outros seres vivos se subsumem.
Poderá parecer que se os nossos metafísicos querem produzir a lista completa de categorias, têm apenas de aplicar o tipo de procedimento pergunta e resposta que usaram no exemplo de Sócrates e de outros objetos. Desde que escolham as suas amostras de uma maneira sensível às diferenças entre as coisas, darão consigo a descobrir categorias novas e diferentes. A dada altura, contudo, descobrirão que não surgem mais categorias novas. Repetir o procedimento trá-los simplesmente de volta às categorias que já isolaram. Nessa fase, podem ficar confiantes, ainda que sujeitos a preocupações normais acerca da adequação de procedimentos indutivos, de que identificaram todos os tipos ou categorias de ser mais elevados.
Esta é uma maneira de pensar acerca de categorias e do seu papel no empreendimento da metafísica. É, na verdade, a maneira como muitos metafísicos veem toda a atividade de identificação categorial. Infelizmente, tem graves insuficiências enquanto explicação daquilo que se passa na metafísica. Para começar, faz da metafísica uma grande chatice. Inventar uma tabela de categorias é simplesmente um procedimento mecânico de encontrar as respostas mais gerais à pergunta "O que é?"; e é difícil compreender como um procedimento que exige tão pouca imaginação pode ter ocupado os esforços das maiores mentes da humanidade durante mais de 2000 anos. Por outro lado, a explicação torna difícil compreender como podia haver desacordos ou disputas interessantes em metafísica. Nesta perspectiva, se dois metafísicos nos dão diferentes listas de categorias, só pode ser porque pelo menos um deles cometeu um erro indutivo, tendo sido incapaz de aplicar o procedimento de pergunta-e-resposta a uma amostra adequada de objetos, ou estava confuso acerca da maneira como funcionam os termos classificativos na nossa linguagem. A verdade, contudo, é que nada é mais comum em metafísica do que o debate e a controvérsia; e os adversários nos debates metafísicos são tipicamente pensadores perspicazes e lúcidos, que pouco provavelmente serão culpados de lapsos intelectuais grosseiros.
Mas as dificuldades com esta compreensão das categorias e a natureza da metafísica vão mais fundo. A imagem pressupõe que os metafísicos iniciam o seu trabalho confrontados com uma totalidade de objetos com certeza dada e que o seu trabalho é encontrar nichos onde colocar os objetos dessa totalidade. A verdade, contudo, é que os filósofos que discordam acerca de categorias discordam acerca de que objetos há. Não há qualquer conjunto dado de antemão acerca do qual todos os metafísicos concordem. As disputas em metafísica são tipicamente disputas sobre como se deve responder à pergunta "Que objetos há?" e dar listas alternativas de categorias é apenas dar respostas diferentes a esta pergunta.
Um exemplo simples permite-nos compreender a natureza das disputas metafísicas. Considere os saltos mortais. "Salto mortal" é um termo que as pessoas que falam português, na sua maioria, sabem usar; todos o aplicamos mais ou menos às mesmas situações e abstemo-nos de o fazer mais ou menos nas mesmas situações; e usamo-lo para exprimir crenças que partilhamos maioritariamente, crenças acerca do que são saltos mortais, crenças acerca de quando aconteceu um, crenças acerca de quando um foi bem executado, e por aí em diante. Podemos imaginar dois filósofos reagindo a estes fatos acerca do termo "salto mortal" de maneiras muito diferentes. Um deles diz-nos que há saltos mortais. Ele ou ela diz-nos que um salto mortal é simplesmente a rotação total daquilo que tipicamente é um corpo humano, ora executado para a frente ora para trás. Ele ou ela insistirá que visto que ocorreram muitas de tais rotações, houve muitos saltos mortais, e afirma que a menos que suponhamos que há saltos mortais, seremos incapazes de explicar como afirmações como George executou cinco saltos mortais entre as 15 horas e as 16 horas de Quinta-feira.
podem ser verdadeiras. O outro filósofo, contudo, discorda. Ele ou ela nega que haja saltos mortais. Concede que as pessoas e alguns animais executem a rotação da maneira relevante, mas nega que isto implique a existência de uma classe especial de entidades, os saltos mortais. Concede igualmente que muitas afirmações como 1 são verdadeiras, mas, mais uma vez, nega que isto implique a existência de um tipo especial de entidade. O que faz a afirmação 1 ser verdadeira, insiste o nosso filósofo ou filósofa, é simplesmente o fato de George ter dado cinco cambalhotas durante o período de tempo relevante.
Acerca de que discordam os nossos dois filósofos? Seguramente não discordam acerca de como usamos o termo "salto mortal" no nosso discurso trivial, pré-filosófico, acerca do mundo, nem discordam acerca do valor de verdade de afirmações como 1. Discordam acerca de os fatos relevantes do uso trivial e da verdade das afirmações pré-filosóficas relevantes nos exigirem ou não que reconheçamos os saltos mortais na nossa história filosófica "oficial" acerca do mundo e das coisas que nele acontecem; discordam acerca de as coisas como saltos mortais deverem ou não entrar no nosso inventário filosófico "oficial" das coisas que há. A tal inventário "oficial" chama-se normalmente Ontologia. Usando este termo, podemos afirmar que os nossos dois filósofos discordam acerca de a nossa ontologia dever ou não incluir saltos mortais. A disputa entre eles é uma disputa metafísica. Não é, contudo, o gênero de disputa de que os metafísicos sérios provavelmente se ocupem. Não é que todos os metafísicos pensem que a nossa ontologia tem de incluir saltos mortais; não pensam. A razão por que os metafísicos não se ocupariam com argumentos acerca do estatuto de saltos mortais é a de que o tópico dos saltos mortais é demasiado específico, demasiado local. O desacordo entre os nossos dois filósofos, contudo, generaliza-se facilmente; e quando o é, torna-se o gênero de disputa de que os metafísicos caracteristicamente se ocupam. O filósofo que afirma que temos de reconhecer a existência de saltos mortais não faz essa afirmação a partir de qualquer afeto especial por saltos mortais. Quase de certeza, a afirmação inspira-se na crença que o filósofo tem na existência de coisas de um tipo mais geral. É porque ele ou ela acredita que os acontecimentos em geral têm de entrar na nossa ontologia que faz a sua afirmação acerca de saltos mortais. Da mesma maneira, o seu adversário nega que haja saltos mortais, não porque ele ou ela tenha um preconceito especial contra saltos mortais, mas porque nega que a nossa história "oficial" do mundo deva fazer referência a acontecimentos. Pelo que a disputa acerca de saltos mortais tem origem numa disputa mais geral. A disputa mais geral é uma disputa categorial. Um filósofo acredita que devemos abraçar a categoria dos acontecimentos; o outro nega isto.
Discordar acerca de categorias, então, é discordar acerca de que coisas existem; e muitas das principais disputas na metafísica são disputas deste gênero. Embora funcionem a um nível mais geral do que a disputa acerca de saltos mortais, exibem amiúde uma determinada estrutura. Temos uma disputa organizada à volta de uma questão acerca da existência de coisas de um tipo ou categoria muito geral. Há propriedades? Há relações? Há acontecimentos? Há substâncias? Há proposições? Há estados de coisas? Há mundos possíveis? Em cada caso, há um corpo de fatos pré-filosóficos que funcionam como dados para a disputa. Uma parte na disputa insiste que para explicar os fatos pré-filosóficos relevantes temos de responder afirmativamente à questão existencial. A outra parte afirma que há algo de filosoficamente problemático em admitir entidades do gênero relevante na nossa ontologia, e argumenta que podemos explicar os fatos pré-filosóficos sem o fazer.
Nem sempre, contudo, as disputas acerca de categorias têm precisamente esta forma. Nem sempre encontramos as partes em disputa dando respostas antagônicas à questão com a forma "Há Cs?" (em que C é um termo para categoria). Por vezes encontramo-los concordando que existem entidades desta ou daquela categoria; mas, então, uma parte prossegue e dizem-nos que embora haja efetivamente entidades correspondentes à categoria, todas são analisáveis em termos de entidades de outra categoria. Suponha-se que a disputa se centra nos objetos materiais. Embora ambas as partes concordem que há objetos materiais, uma parte diz-nos que os objetos materiais são analisáveis como coleções de qualidades sensoriais. É provável que o interlocutor na disputa responda afirmando: "Olhe, você não pensa realmente que há objetos materiais. Apenas profere as palavras. Na sua perspectiva, não há realmente objetos materiais; há apenas qualidades sensoriais." Em resposta, o outro interlocutor irá sem dúvida objetar que acredita realmente haver objetos materiais. "Não nego que os objetos materiais existem; digo-lhe apenas como são." É difícil saber como resolver o argumento acerca do termo "existe"; mas seja como for que o resolvamos, temos de conceder que há aqui um profundo desacordo metafísico, um desacordo que é, em sentido lato, existencial. Uma maneira de exprimir o desacordo é afirmar que enquanto um metafísico quer incluir os objetos materiais entre os elementos primitivos ou básicos da sua ontologia, o outro não o quer fazer. O primeiro nega que se possam analisar os objetos materiais em termos de entidades mais básicas ou reduzi-los a estas; o último entende que os objetos materiais são meras construções feitas a partir de entidades mais fundamentais. Embora afirme que há objetos materiais, quando olhamos para os itens primitivos da sua ontologia (isto é, os itens que na sua ontologia não são redutíveis a entidades de um tipo mais básico), não encontramos quaisquer objetos materiais, apenas qualidades sensoriais. No nível mais baixo, então, não há quaisquer objetos materiais na sua ontologia. Na sua teoria metafísica, os objetos materiais não estão entre os "alicerces" básicos da realidade. Podemos afirmar que enquanto os objetos materiais constituem uma categoria primitiva ou inderivada na Ontologia de um filósofo, constituem uma categoria derivada na do outro.
Pelo que as disputas acerca de categorias são disputas acerca da existência de entidades de algum tipo ou categoria muito geral. Por vezes as partes em disputa discordam quanto à existência de entidades do tipo relevante; por vezes discordam acerca de as entidades da categoria ser ou não redutíveis a entidades de uma categoria mais básica. Dar uma teoria metafísica completa é dar um catálogo completo das categorias em que se subsumem as coisas e identificar os gêneros de relações que se verificam entre essas categorias. A última tarefa implica a identificação de determinadas categorias como básicas e de outras como derivadas, e uma especificação de como, exatamente, se reduz ou analisa as entidades de categorias derivadas em termos de entidades das categorias básicas. Um catálogo completo deste gênero representaria uma explicação geral de tudo o que há. Aristóteles acreditava que o objetivo da empresa metafísica é uma explicação deste gênero. Poucos metafísicos hoje estão prontos para dar este tipo de teoria completa das categorias. As questões que rodeiam cada uma das categorias que historicamente têm sido o foco da teorização metafísica são tão complexas que os metafísicos contemporâneos se satisfazem se puderem trabalhar um punhado que seja destes conjuntos de questões. Neste livro, vou seguir a sua esteira. Não vamos tentar algo tão ambicioso como um sistema completo de categorias. Vamos focar-nos nas questões levantadas quando se procura responder a apenas algumas das questões categoriais que surgem na metafísica. As questões que vamos considerar são todas muito importantes e fundamentais, pelo que examiná-las nos deve dar uma boa noção do que a metafísica é ao certo. Avancemos, então, com as questões; e comecemos com o conjunto de questões a que se tem chamado o problema dos universais.

A FILOSOFIA METAFÍSICA PLATÔNICA
Platão de Atenas (428/27–347 a.C.) foi um filósofo grego. Platão, cujo verdadeiro nome era Aristócles, nasceu em Atenas, em 428/427 a.C., e lá morreu em 347 a.C. Platão é um nome que, segundo alguns, derivou de seu vigor físico e da largueza de seus ombros (platos significa largueza). Ele era filho de uma abastada família, aparentada com famosos políticos importantes, por isso não espanta que a primeira paixão de Platão tenha sido a política. Inicialmente, Platão parece ter sido discípulo de Crátilo, seguidor de Heráclito, um dos grandes filósofos pré-Socráticos. Posteriormente, Platão entra em contato com Sócrates, tornando-se seu discípulo, com aproximadamente vinte anos de idade e com o objetivo de se preparar melhor para a vida política. Mas os acontecimentos acabariam por orientar sua vida para a filosofia como a finalidade de sua vida. Platão tinha cerca de vinte e nove anos quando Sócrates foi condenado à beber o cálice de cicuta (veneno fortíssimo). Ele havia acompanhado de perto o processo de seu mestre, e o relata na Apologia de Sócrates. O fato de Atenas, a mais iluminada das cidades-estados gregas, ter condenado à morte "o mais sábio e o mais justo dos homens", como falara mediunicamente o oráculo de Apolo, em Delfos - lhe deixou marcas profundas que determinariam as linhas mestras de toda a sua atividade de filósofo. Acredia-se que todas, ou uma boa parte da obra de Platão nos chegou inteira. Além de cartas e da Apologia de Sócrates, Platão escreveu cerca de trinta Diálogos que têm sempre invariavelmente Sócrates como protagonista. Nestas obras excepcionais, Platão tenta reproduzir a magia do diálogo socrático, imitando o jogo de perguntas e respostas, com todos os meandros da dúvida, com as fugazes e imprevistas revelações que impulsionam para a verdade, sem, contudo, revela-la de modo direto. O motivo pelo qual sua obra nos chegou praticamente intacta reside no fato de Platão ter fundado uma escola que se tornou famosa, e que era dedicada ao herói Academos. Daí o nome Academia. Platão foi o responsável pela formulação de uma nova ciência, ou, para ser mais exato, de uma nova maneira de pensar e perceber o mundo. Este ponto fundamental consiste na descoberta de uma realidade causal suprassensível, não material, antes apenas esboçada e não muito bem delineada por alguns filósofos, embora tenha sido um pouco mais burilada por Sócrates. Antes de Sócrates, era comum tentar-se explicar os fenômenos naturais a partir de causas físicas e mecânicas. Platão observa que Anaxágoras, um dos pré-socráticos, tinha atinado para a necessidade de introduzir uma Inteligência universal para conseguir explicar o porquê das coisas, mas não soube levar muito adiante esta sua intuição, continuando a atribuir peso preponderante às causas físicas. Entretanto, se perguntava Platão, será que as causas de caráter físico e mecânico representam as "verdadeiras causas" ou, ao contrário, representam simples "concausas", ou seja, causas a serviço de causas mais elevadas? Não seria o visível fruto de algo mais sutil? Para encontrar a resposta às suas dúvidas, Platão empreendeu aquilo que chamou simbolicamente de "a segunda navegação". A primeira navegação seria o percurso da filosofia naturalista. A segunda navegação seria a orientação metafísica de uma filosofia espiritualista, do inteligível. O sentido do que seja essa segunda navegação fica claro nos exemplos dados pelo próprio Platão. Se se deseja explicar por que uma coisa é bela, um materialista diria que os elementos físicos como o volume, a cor e o recorte são bem proporcionais e causam sensações prazerosas e agradáveis aos sentidos. Já Platão diria que tudo isso seria apenas qualidades que evocariam uma lembrança de algo ainda mais belo, vista pela alma no plano espiritual, mas que não está acessível ao plano físico. O objeto seria apenas uma cópia imperfeita, por ser material, de uma "Ideia" ou forma pura do belo em si.
A IDEIA
No começo, podemos definir a teoria das Ideias dizendo que o mundo sensível é apenas uma cópia do mundo ideal, e que o objeto da ciência é o mundo real das Ideias. O mundo inteligível é estudado na dialética, e o mundo sensível é o domínio da opinião (DOXA).
A existência do mundo Ideal é baseada em duas provas, segundo Thonnard: uma de ordem lógica, e outra de ordem ontológica.
A prova lógica: Platão em nenhum momento põe em dúvida a existência da ciência, que para ele é um fato indiscutível; então, é necessário um objeto estável e permanente, que possa permanecer no espírito. Ora, para Platão, esse objeto não se encontra no mundo sensível, pois ele acredita, como Heráclito, que o mundo é “um infinito e perpétuo tecido de movimentos”, onde “tudo passa como as águas das torrentes”, sendo que nada permanece estável. Surge, então, a necessidade da ciência encontrar seu objeto: o mundo inteligível das Ideias.
Prova Ontológica: Thonnard diz que o mundo sensível prova a existência do mundo ideal como sombra da realidade. Sabemos disso, pois os objetos desse mundo são mais ou menos perfeitos, e estas participações supõem a existência de uma fonte que possui a perfeição em estado pleno. Esse é o mundo inteligível, que é o objeto da ciência.
A pluralidade das Ideias podem ser provadas de duas maneiras: uma prova direta e outra indireta.
Thonnard assim define essas provas: a prova direta é resultado da experiência racional, e o objetivo é libertar do mundo sensível as perfeições estáveis. O mundo sensível não pode apresentar um objeto real que possa ser fonte de um conhecimento científico, por isso é necessário pedir auxílio ao mundo das Ideias.
Prova indireta: Sabemos que negar a pluralidade das Ideias destruiria toda a ciência, pois ela é um sistema coordenado de juízos. Para a ciência existir são necessários objetos estáveis para um ser inteligível, e também uma pluralidade de Ideias para construir um conjunto de juízos. Sendo assim, Thonnard conclui que se deve conceder a Heráclito que os objetos sensíveis estão em perpétua variação e misturados com seus contrários; que devemos rejeitar Parmênides, pois o Ser que tem estabilidade desejada, mas destrói todo o juízo pela sua absoluta unidade; por último, Sócrates liberta do sensível perfeições múltiplas, mas estáveis, que podem definir-se. O objeto da ciência não é o mundo sensível, mas os gêneros que Sócrates definiu, tantos os substanciais, como as qualidades, pois esse é o mundo das Ideias.
A NATUREZA DAS IDEIAS
Platão definiu quatro propriedades:
A espiritualidade, que são de ordem inteligível, portanto, invisíveis aos olhos humanos e apreendidas pela inteligência.
A realidade, pois para Platão as Ideias não são conceitos abstratos do espírito, nem pensamentos do Espírito divino, mas são realidades subsistentes e individuais, sendo objeto da contemplação científica e fonte das realidades da terra. Da realidade, derivam-se duas propriedades:
A imutabilidade, que exclui toda a mudança, pois são eternas;
A pureza, pois realiza a essência plenamente e sem mistura, e cada uma na sua ordem é perfeita.
O MÉTODO DE PLATÃO
No filósofo grego, o método principal é o dialético, com um aspecto lógico, um psicológico e a doutrina metafísica da participação das Ideias.
O aspecto lógico é a continuação do método Socrático, em que Platão insiste no papel da purificação; propõe que a razão incite à investigação das essências graças à Dialética do amor, e conduz o espírito por degraus sucessivos até à intuição do mundo ideal.
O método da purificação é àquele que procura liberar a alma intelectual do peso da matéria através do domínio do eu. Controlando às paixões desordenadas, submetendo as tendências inferiores à razão, o homem está a caminho das realidades eternas, porque as coisas do mundo sensível não são mais do que a sombra. Libertando à alma do corpo, ela eleva-se até o mundo das Ideias, pois o objetivo do filósofo, segundo Platão, é aprender a morrer (Fedon).
O MUNDO SENSÍVEL E O DOMÍNIO DA OPINIÃO
Platão diz no Timeu: ”O que é fixo e imutável supõe razões fixas e imutáveis. Quanto à imitação do que é imutável, convém falar dela em forma verossímil e analógica… Posto que as minhas palavras não tenham mais inverossimilhança que as dos outros, há que nos contentarmos com elas…convém em semelhante matéria limitarmo-nos a discursos verossímeis.” Thonnard explica que isso sugere explicações de ordem mítica.
O mundo sensível possui em primeiro grau as percepções efêmeras das coisas sensíveis. Thonnard explica que a atenção para ouvir ou recordar-se de belas músicas, procurando a mais harmoniosa, só dá origem à conjectura.
No segundo grau temos o esforço de estabilização em que se esboçam as definições científicas; porém, fica incompleto e provisório porque se baseia em opiniões aceitas pelo povo ou transmitidas por poetas e tradições religiosas( mitos como o narrado em Fedro, em que o cavalo branco representa o coração, e o cavalo negro a concupiscência).
A EXISTÊNCIA DE DEUS
Platão recorre ao mito para provar a existência de Deus. Temos duas provas:
Prova baseada na existência do mundo: Deus é o Demiurgo. Platão reconheceu que para uma obra ter origem, é necessário que haja um artífice, e expõe o seu Demiurgo em linguagem mítica. Ele, depois de ter contemplado o mundo Ideal, decidiu fazer o universo à sua imagem.
Prova baseada no movimento: Deus é a alma real. Platão verifica que o mundo está sujeito a um movimento ordenado, como o movimento circular das esferas celestes, que é pela sua estabilidade, a própria imagem da inteligência. Para que exista o movimento, é necessário um motor. Platão sugere dois motores: um corpóreo e a alma. O corpo é inerte e é sempre movido por um outro antes de se mover, e a alma é o motor que tem em si o princípio de seu movimento, e pode comunicá-lo sem receber antes (As Leis). a alma domina o corpo que morre.
A PSICOLOGIA
Para Platão, a alma está acidentalmente unida ao corpo, e é uma substância espiritual completa. Existem três teorias para estabelecer essa doutrina:
A preexistência da alma que é definida pela teoria da reminiscência, porque Platão desconhecia a criação ex nihilo do judaísmo e cristianismo, de forma que explicar a existência de ideias presentes em nós desde o nascimento ficava impossível a não ser por uma vida anterior. Platão explica essa vida anterior por um mito em que as almas cometem certas faltas e são punidas com a união com o corpo humano.
A união acidental da alma com o corpo difere a teoria de Aristóteles, porque Platão acreditava que o corpo impedia a alma de alcançar à sabedoria por imposição de necessidades tirânicas, e que a alma prejudicava o corpo porque investigações filosóficas profundas levavam à exaustão corporal.
A imortalidade da alma que pode ser demonstrada pela participação no mundo ideal, na Ideia da vida e na necessidade moral.
A MORAL
Platão quer que a Ideia do bem seja derramada na natureza humana. A felicidade para ele não está identificada com o prazer, pois era isso que os sofistas pregavam. Falta ao prazer estabilidade e plenitude, pois novos desejos levam a novos sofrimentos em um movimento que parece não ter fim. Ele identifica a sabedoria com a felicidade, mas acredita na desigualdade das inclinações dos homens para a prática da virtude; uns se contentariam com a coragem, outros com a temperança; poucos, no entanto, buscariam à virtude perfeita. Esses possuiriam o germe divino da sabedoria.
O ESTADO PARA PLATÃO
A existência do Estado é necessária para a prática da virtude, mas Platão o concebia como pequenas cidades autônomas. Dividia o povo em classes sociais como os trabalhadores, os guerreiros, os arcontes e os escravos. Nesse ponto, Platão tem uma vantagem monumental sobre Aristóteles, que Thonnard, fiel ao seu aristotelismo dogmático, não menciona: ele considera a escravidão um mal e que deveria ser evitado. Nas penas da vida após à morte do Hades platônico está a de ter possuído escravos. Platão também sugeriu a igualdade de homens e mulheres, concedendo uma grande dignidade a essas últimas. A educação deveria ser igual para ambos os sexos. A forma de governo mais adequada para os cidadãos é a aristocracia ou a monarquia, de preferência governada por um rei-filósofo. A democracia é condenada.
Agora Platão nos narra o seu mito da caverna. Voegelin diz que o mito prepara o conhecimento da PAIDEIA. A educação de um homem é incompleta se ele não experimentou a verdade da alma, a PERIAGOGE. Depois de o homem ser solto da caverna e ter experimentado a contemplação divina, ele quer ficar lá para sempre (517). Esse homem (filósofo) que experimentou a eudaimonia irá sentir-se inclinado a permanecer na contemplação e não irá querer voltar para os seus companheiros prisioneiros. Haveria então a tentação de esse filósofo tornar-se apolítico. Mas ele deve descer e sacrificar-se à polis.
Ele então desce (KATABATEON). Sócrates desceu para ajudar os prisioneiros da caverna e consegue discernir as sombras (EIDOLA) das coisas reais. Como o filósofo viu o AGATHON, a polis sob seu comando será governada com uma mente desperta (HYPAR) em vez de ser conduzida como as outras Pólis como num sonho (ONAR)
A filosofia platônica foi adotada pela igreja católica até o século XIII, herdada pelos padres da igreja, especialmente Santo Agostinho. A partir de São Tomás de Aquino, e pelas influências de Aristóteles, a posição da igreja em relação à mulher muda: a igreja que antes concedia grande liberdade para as mulheres no cristianismo, permitindo até o divórcio, torna-se hostil a essas liberdades, pregando a clausura para as freiras e impedindo algo completamente natural e humano que é o divórcio. A mesma filosofia aristotélica que criou dificuldades para São Tomás de Aquino em relação à escravidão impediu a igreja católica de oferecer respostas ao gigantesco tráfico de seres humanos vindos da África para as Américas. Os protestantes ingleses, hostis a Aristóteles, e mais abertos a Platão, foram aqueles que iniciaram o movimento abolicionista mundial.
SÍNTESE DAS PRINCIPAIS OBRAS DE PLATÃO
FILEBO
Filebo é um diálogo que trata do prazer. Sou da opinião que antes de ler esse diálogo o leitor já deve ter lido o Parmênides e o Político para uma melhor compreensão. Participam do diálogo três personagens: Sócrates, Protarco e Filebo. No início, Filebo faz a afirmação de que a vida de prazeres é mais desejável do que a vida do saber. Sócrates então sugere que se for demonstrado que o prazer é superior e não precisa de nenhum outro bem, então o prazer será o vencedor; caso seja o saber, o mesmo acontecerá. Uma pequena discussão entre Sócrates e Protarco acontece pelo fato desse último não fazer uma diferenciação entre os graus dos prazeres. Depois de algumas perguntas e respostas, Sócrates vence o debate.
Começa então um debate sobre as relações do Uno e do Múltiplo. Nesse ponto, Giovanni Reale (Para uma nova interpretação de Platão) afirma que “depois de ter destacado que a conexão do Uno e dos Múltiplos estabelecida pelo raciocínio encontra-se em toda parte e sempre, em todas as coisas de que se fala, Platão explica que, para superar as dificuldades que isso comporta, é necessário proceder pela via pela qual foram feitas todas as descobertas no âmbito das artes”. Platão fala sobre o mito do deus Thoth e como ele criou a arte da gramática, pois o homem com as vogais e consoantes isoladas não podia, por si só, compreendê-las. A voz, diz Reale,” é uma espécie de Ideia e também é uma multiplicidade ilimitada em cada um e em todos”. Com isso “obtém-se uma trama lógico-ontológica traduzível em número, que permite passar, depois, aos sons sensíveis individuais.” (Reale)
O diálogo fala sobre questões metafísicas na sequência. Sócrates que definir o que é ilimitado, o limitado e a mistura para saber a natureza do Uno e do bem, pois uma vida apenas de saber ou de prazer é impossível. Ora, lendo o diálogo entendemos que Sócrates fala sobre o que é ilimitado, como o são o frio e o quente, e o limitado, que são o dobro e a classe dos números que tudo torna harmonioso, com isso o que é lento e rápido formam a harmonia da música, e o quente e o frio geram as estações. Sócrates então afirma: “Essa deusa, belo Filebo, observando como o excesso e a perversidade universal conquistavam a predominância, devido à ausência de limite para os prazeres e o seu gozo, instaurou a lei e a ordem, que impõem limite. Dirias que ela, com isso, causou dano; eu, ao contrário, diria que ela promoveu a salvação.”
Com isso temos quatro categorias: o limitado, o ilimitado, a mescla entre esses dois e a quarta que é a causa dessa mescla e geração que é o Demiurgo. Com isso estabelecido, Sócrates reafirma que a inteligência (Nous) é  o nosso rei no céu e na Terra e define o homem como uma mistura de prazer e saber. O livro é um pouco parecido com a Ética a Nicômaco de Aristóteles. O meio-termo é buscado durante o diálogo, e o Uno é considerado a causa da mistura, a coisa de supremo valor, e que por ser o bem, o Uno transforma a mistura em algo bom também ( Reale).
Max Pohlenz define de maneira admirável o que Platão entendia como Medida: “Para Platão, a eudaimonia consiste em um prazer puro: a alegria refere-se ao belo sensível, no qual entram em primeiro lugar as formas geométricas e o gozo que traz a atividade espiritual (…) Pode nos parecer estranha a importância atribuída à medida, posta no vértice da escala de valores: mas na realidade Platão entende por medida o absoluto, e escolhe essa denominação porque o absoluto inclui em si não só o bem entendido em sentido finalístico, mas também o belo e um princípio de ordem e de proporção e constitui a causa primeira do seu existir concreto e a norma da sua exata mistura.” ( citado em Reale)
POLÍTICO
Político é um diálogo desafiador de Platão pois envolve mitos e diversas metáforas. Trata-se da continuação de O Sofista, mas é possível compreender essa obra ( Político) mesmo sem ter lido O Sofista. Participam desse diálogo Sócrates, Teodoro, o estrangeiro e o jovem Sócrates. Esses dois últimos dominam o diálogo. Podemos dizer que o tema principal é determinar como seria o governante ideal da Pólis. O Estrangeiro determina que o Rei será mais teórico (gnostikes) do que prático, e que durante o diálogo serão unificados o conhecimento político e o homem político, ou seja, o conhecimento régio e o Rei. Farei uma exposição do mito dos ciclos cósmicos com a ajuda do filósofo Eric Voegelin, que escreveu sobre o Político em seu livro Ordem e História-Platão e Aristóteles.
O mito apresentado pelo Estrangeiro fala de Cronos e seu reinado. Durante um período, diz Platão, o próprio Deus acompanha o universo, e depois de certo período em que os círculos completam a medida do tempo, o deus deixa o universo por iniciativa própria. Isso faz com que o movimento seja feito no sentido contrário. Platão faz uma observação que a imutabilidade absoluta faz parte das coisas divinas, por isso o corpo não faz parte dessa classe de coisas. Em um determinado momento o universo é movido circularmente pelo deus. Em uma parte a causa divina é extrínseca, quando lhe é retransmitida a vida e a imortalidade a partir do Demiurgo. Em outro momento o universo é deixado por conta de si mesmo. Diz Eric Voegelin:” a alternância de movimento afeta não só o domínio da natureza, mas também o domínio do homem na sociedade. No primeiro ciclo, o próprio deus supervisiona o Cosmos, enquanto as várias partes do Cosmos eram colocadas sob a supervisão de divindades exteriores.” Nesse período, diz ainda Voegelin, “o próprio Deus era o pastor dos homens; nessa época não havia governo ( poiliteia).” Os homens tudo possuíam nessa era de Cronos.
O Estrangeiro fala sobre as mudanças que ocorrem no universo. Em algumas épocas grandes destruições ocorrem aos seres vivos e apenas uma parte dos homens sobrevive. Isso foi causado, segundo Voegelin, pela introdução do elemento corporal na ordem cósmica.  Isso produziu uma mudança na natureza pois os homens pararam de envelhecer e inverteram o processo, ficando cada vez mais jovens com o passar do tempo. Os homens nessa época não se reproduziam pelo sexo, mas nasciam da terra. O Estrangeiro lamenta que o relato dos velhos não sejam mais levados a sério. Os mortos voltam à vida, pois o processo de nascimento é invertido da mesma forma que o movimento circular do universo. Só haveria uma exceção que o deus reservou para outro destino: essa exceção seriam os filósofos. Nesse período do reinado de Cronos, o governo foi dividido entre os deuses e os seres vivos eram governados pelos daimons, de maneira que não eram selvagens e nem se devoravam uns aos outros.
O Estrangeiro pergunta ao jovem Sócrates qual era a melhor época para se viver: a de Cronos ou a atual de Zeus? O jovem Sócrates pede uma explicação, pois não sabe responder. O Estrangeiro diz que supostamente os homens nesse tempo aproveitavam todas as oportunidades para se ocuparem da filosofia e aprenderem com os animais, uma vez que nessa época essa conversação era possível. Ora, chegou o momento em que o ciclo de renascimentos chegou ao fim e que o Timoneiro largou o timão e se retirou para o posto de vigia. A era dos homens nascidos da terra chegou ao fim. O universo passou a se mover inversamente. Houve então uma grande colisão no universo que produziu um aniquilamento dos seres vivos. Depois de certo tempo o universo se estabilizou e pôde recordar os ensinamentos do artífice e pai, no começo de maneira mais exata, mas depois de uma maneira negligente pela introdução do elemento corpóreo em sua composição.
Então nesse momento, o homem foi abandonado à própria sorte, e ficou exposto às feras selvagens e teve que aprender a cuidar de si. Como escreve Voegelin, Platão rejeita como mito as fábulas dos deuses como Prometeu que teriam ajudado os homens em invenções que fariam avançar a civilização.Enquanto o timoneiro governava, ele produziu  poucos males e grandes bens, diz o Estrangeiro. Nesse momento o mito é encerrado pelo fato do Estrangeiro dizer que é suficiente a apresentação do governante régio. O mito da Idade do Ouro é rejeitado porque implica uma renúncia à consciência filosófica, diz Voegelin.
Platão sugere que a ordem será restaurada pelo restaurador Régio, o que se assemelha muito com a concepção de Joaquim de Fiore do dux. No entanto, como observou Voegelin, “o dux surge de uma tensão entre uma civilização em crescimento e uma ideia de declínio, enquanto o governante platônico surge da tensão entre um declínio político real e uma nova substância espiritual.” A ideia de Joaquim de Fiore de uma realização plena com representantes do orgulho civilizacional foi realizada pelos progressistas do século XVIII, por Comte, Marx, Mill, Lenin e Hitler, escreve Voegelin, enquanto a realização platônica é feita com uma crescente ordenação espiritual de um mundo em desordem por meio da figura de Alexandre, da ordem imperial romana e de Cristo (Eric Voegelin, Ordem e História, Volume III).
Político pretende explicar qual será a personalidade e as qualidades que o governante régio deverá possuir. No final do capítulo que trata do Político, Voegelin escreveu essas palavras:” O governante régio é o mediador enter a realidade divina da Ideia e as pessoas; ele é o Zeus que rejuvenesce a ordem que envelheceu; é o médico que cura as almas fazendo-as renascer no meio celestial (en daimonio genei); e, ao promover esse renascimento das almas, ele proporciona à pólis uma nova substância comunitária (homonoia) espiritual. É supérfluo destacar de forma detalhada o paralelo entre essa evocação platônica e a concepção paulina da comunidade cristã, unida num só corpo místico por meio do renascimento no Espírito de Cristo, que deriva a sua coerência da harmonia (homonoia) de seus membros e supera a diferença de talentos e caracteres pelo agape. Em vez disso, é necessário enfatizar a diferença fundamental de que o renascimento platônico da comunidade não é a salvação da humanidade, mas um retorno à juventude do cosmos que será seguido, de acordo com a lei inescrutável de Heimarmene, por um novo declínio”.(Eric Voegelin, Ordem e História, Volume III)
PARMÊNIDES
Não há filósofo na história que escreva melhor do que Platão; pode-se dizer que desde então a qualidade literária dos filósofos vem em uma longa decadência. Como foi possível que um tema tão complexo e que poucas pessoas realmente demonstraram interesse em ler e aprender o que Platão queria ensinar pudesse ser colocado em palavras e diálogos tão belos e profundos? Nesse caso, poucos são aqueles que podem dizer que entenderam esse que é o mais desafiador dos diálogos de Platão. Se eu dissesse que entendi em profundidade estaria mentindo, por isso, pretendo mais fazer um resumo do que expor a minha opinião.
Participam do diálogo três personagens principais: Parmênides, filósofo que viveu no século V antes de Cristo; Zenão de Eleia, que era contemporâneo de Sócrates, e o próprio Sócrates, aqui em sua juventude. Em um encontro imaginário entre esses três filósofos, uma questão se impõe: existe uma forma de semelhança por ela mesma e que exista outra que seja oposta à primeira forma que todos nós classificamos como múltiplas e participamos dessas duas? Essa é a pergunta de Sócrates. O jovem filósofo questiona a Zenão se as coisas não são unas na sua unidade e múltiplas na sua multiplicidade. O exemplo de Sócrates é o seguinte: não podemos dizer que somos múltiplos pelo fato de termos um lado esquerdo e outro direito, da mesma forma que temos nossa frente e nossa traseira? da mesma forma podemos afirmar que somos unos pois no meio de um grupo de pessoas podemos dizer que representamos uma unidade nesse grupo.
AS OPINIÕES DE PARMÊNIDES E DE ZENÃO EM TERMOS HISTÓRICOS
Parmênides acreditava na unidade e imobilidade do Ser, e que esse Ser é uno, eterno e imutável.
Zenão definia Deus como eterno e tendo também como atributo a Unidade. Ele não teria atributos da multiplicidade como ser limitado e móvel, nem imóvel e ilimitado, pois essas são características do não-ser.
Voltando ao diálogo, Parmênides questiona Sócrates sobre a doutrina desse último sobre as formas. Sócrates responde que não está certo de que exista uma forma ideal do ser humano, assim como do fogo e da água; ele não crê que existam formas ideais de coisas ridículas. Parmênides pergunta a respeito se essas formas seriam unas, e Sócrates responde que sim, pois elas manteriam sua unidade mesmo estando em lugares diferentes. Parmênides dá o exemplo de uma vela que ilumina várias pessoas ao mesmo tempo e assim mesmo mantém sua unidade. Sócrates concorda. Mas Parmênides questiona sobre a teoria das formas de Sócrates a respeito de como outras coisas participariam dessas Formas se delas não podem participar enquanto partes ou enquanto todos. Sócrates reconhece que isso não é fácil de ser resolvido.
Parmênides acredita que Sócrates confunda o Uno com o que é grande, com isso o jovem filósofo estaria multiplicando as Formas ao infinito. Sócrates responde que cada uma dessas formas seria apenas um pensamento. Elas seriam uma coisa singular pensadas por esse pensamento como sendo algo pertinente a tudo, e como sendo uma forma, diz Parmênides. Sócrates afirma que essas Formas existem na natureza como modelo (paradeigmata), e as outras coisas se assemelham a elas e nada mais.
O diálogo segue com Parmênides fazendo algumas objeções à teoria das Formas de Sócrates e, por fim, diz a ele que os conceitos que ele possui sobre essas Formas e o que é belo são ainda precipitados pelo fato dele ser jovem. Parmênides, Sócrates, Zenão e um jovem chamado Aristóteles (que não é o famoso estagirita) iniciam um novo diálogo com esse último respondendo perguntas desafiadoras de Parmênides. Ele pergunta o seguinte, entre uma multidão de outras questões: se o uno existe, não é possível que seja múltiplos, não é mesmo? E o que se segue é um resumo da doutrina de Parmênides sobre o uno em forma de perguntas e respostas.
Em determinado momento desse jogo entre Parmênides e Aristóteles, o primeiro define alguns dos atributos do uno que o último é obrigado a reconhecer. Parmênides afirma que o uno participa da existência e do ser. Como comenta Mário Ferreira dos Santos a respeito desse diálogo, o Um não está no tempo, pois tudo o que está no tempo é sempre da mesma idade; mais velho que si mesmo; mais jovem que si mesmo; por causa disso, o Um é atemporal. Explica o filósofo brasileiro: “quando ele( Parmênides) diz: Então o Um não participa do ser de nenhuma maneira (Oudamos ara to en ousias metexei) refere-se à Ousia, que corresponde à substantiados Latinos, o que constitui o ser ôntico da coisa e também a sua essência, como substância segunda, como forma. O Um não tem realidade fáctica (de factum, feito), não é um ser feito, pois tais seres participam do ser (ousia). Mas tanto em Platão como em Aristóteles, a ousia é o que se opõe, to me enai, ao não-ser. Se o ser não é a substância (ousia) seria um não-ser.”
É um livro fascinante e muito desafiador. Conhecer um pouco da filosofia de Parmênides é essencial antes de começar a ler esse diálogo. Nele o jovem Sócrates desempenha o papel de aprendiz diante de um imponente Parmênides.
FEDRO
Fedro é a continuação do tema discutido em O Banquete, ou seja, o tema é o amor. O diálogo inicia-se com Fedro se encontrando pelo caminho com Sócrates. Fedro voltava da casa de Lísias, que era um mestre da retórica e redigia para ambos os lados nos tribunais. Fedro conversa com Sócrates sobre a bela impressão que um discurso que Lísias proferiu em sua casa causou em sua mente. Sócrates fica curioso e pede que Fedro o reproduza para que ele possa analisá-lo.
O discurso de Lísias versa sobre o amor entre homens como era comum naquele tempo da Grécia clássica. Lísias acredita que a paixão entre dois amantes é prejudicial porque nunca é satisfeita, e está sujeita a muitas aflições, como o medo da separação e o favorecimento após a separação ao novo amado, em prejuízo do antigo amante. Ele acredita que quem está apaixonado não consegue manter os seus negócios e nem está em seu juízo normal. Pela conversa entre os amantes, diz Lísias, podemos até saber se já se uniram ou vão se unir sexualmente. O homem que vive pela paixão não só por outras pessoas, mas também pelo dinheiro e pelo conhecimento, vivem em constante angústia pela existência de outros homens que os suplantem em termos financeiros e de conhecimento. Lísias acredita que é melhor viver sem se apaixonar, e preferir à amizade do que a paixão.” Liberto do amor, sou capaz de me dominar”, proclama Lísias. Então começa uma série de recomendações de Lísias sobre a vantagem da amizade que não espera o amor em troca, do que a paixão. Dar comida aos mendigos e preferir os amigos que vão estar ao seu lado na velhice e não apenas na juventude, são alguns dos conselhos dados pelo orador.
Sócrates ouve tudo isso e, ironicamente, diz a Fedro que adorou o discurso. Este último então pede que ele faça um de seus famosos discursos para que possa compará-lo com o de Lísias. Sócrates aceita o desafio. Ele então explica que o que Lísias definiu não é o amor verdadeiro, guiado pela temperança, mas sim a paixão, que é uma forma de amor dominada pela intemperança. Esta última é dominada pela busca do prazer; o primeiro pela busca do que é melhor. Sócrates define o homem apaixonado como sendo aquele que deseja que o seu amado seja inferior a ele, pois quem é movido pela paixão não suporta a ideia da existência de um homem que lhe seja superior. Mais grave, diz Sócrates: o homem apaixonado acaba por fazer o pior ato em relação ao amado, que é afastá-lo da filosofia. Outro ato que o apaixonado pratica é não desejar ou permitir que o amado se case e tenha filhos (lembremos que o diálogo é sobre o amor entre homens). Sócrates interrompe seu discurso e Fedro fica decepcionado por esse ter sido tão curto.
É aí que o diálogo muda de tom, pois Sócrates é possuído nesse momento por um daimonion, o qual faz o filósofo grego se arrepender pelo seu discurso anterior. A partir desse momento, Sócrates pretende fazer um elogio a Eros e apresentar sua definição da natureza da alma e o seu destino. Sócrates define a alma como imortal porque tudo aquilo que move a si mesmo e não é movido por outro é imortal. Nesse ponto Sócrates conta o mito do cocheiro ( ou carro alado): a alma pode ser comparada a um carro puxado por uma parelha conduzida na sua frente por cavalos e atrás por um cocheiro. A alma divina é conduzida por cocheiros e cavalos de boa raça; a dos outros é conduzida por cavalos mestiços. O que Sócrates quer dizer com esse mito? Ele explica o destino das almas e como elas perdem suas asas. A alma quer contemplar o que é belo e eterno, pois isso as faz crescer; do mesmo modo tudo aquilo que é mau e feio faz com que as asas diminuam. Lá no céu, os deuses preparam um banquete. Os carros alados então começam a subir por um caminho tortuoso. Nesse momento o carro puxado pelos cavalos de boa raça segue seu caminho sem dificuldade, enquanto a de raça mestiça puxa para a Terra. Aqueles conduzidos pelos cavalos de boa raça então chegam e contemplam o universo. Esses serão aqueles que contemplam a realidade da Ideia, que é a ciência perfeita, após terem passado pela vida e contemplado a ciência e a justiça, dessa forma quando seus carros chegam ao céu, o condutor dos cavalos dá-lhes néctar como recompensa. Isso é o que Sócrates define como a vida dos deuses.
Quanto ao destino das almas conduzidas por cavalos mestiços, o seu destino é no momento da subida, quando os cavalos começam a tropeçar, elas passam a olhar somente para baixo, ou seja, para a realidade, perdem parte das penas de suas asas e não contemplam o Ser Absoluto, de modo que elas caem e ficam presas a simples opinião (DOXA). Mais adiante, Sócrates fala sobre o conceito da reminiscência (ANAMNESE). A única alma que recebe asas é a do filósofo, pois esta com a evolução da alma sempre relembra das verdades eternas que contemplou. É pelo fato desse homem praticar essas recordações que sua vida se assemelha à de um deus. Sócrates considera o filósofo que ama o que é belo como o verdadeiro amante, pois este quer sempre voar para o alto ainda aqui na Terra, sendo tomado nesse instante por uma espécie de loucura. Esse homem que foi iniciado nos mistérios não mais se entregará aos vicíos como a pederastia e nem à realidade desse mundo. Todo aquele que não foi iniciado ou se corrompeu entregar-se-á aos prazeres da carne.
Depois de terminar o seu discurso, Sócrates volta à realidade, e diz para Fedro que o discurso que fez quando estava sob a influência do daimonion corrigiu o primeiro, quando ele concordou com o caráter negativo do amor da mesma forma que Lísias. O Sócrates do segundo discurso fala sobre o amor divino e aos bens espirituais, que são aqueles que ele crê que os homens devam buscar; o primeiro discurso reflete sua certeza de que o amor ao prazer carnal ( pederastia) e às opiniões desse mundo são nocivos.
Fedro é um livro muito belo e poético, que define de maneira breve algumas das concepções da psicologia de Platão. A teoria da reminiscência (ANAMNESE) será discutida novamente no seu diálogo A República. Platão acredita que o verdadeiro amante da sabedoria e amigo dos deuses é aquele que relembra o que viu no mundo das Ideias, quando contemplou a verdade e a justiça. Quando está nesse mundo, esse homem que vive a vida de filósofo e que pensa e ensina tudo aquilo que um dia viu e aprendeu, tem a obrigação de ensinar aos que ainda estão presos na caverna e só observam as sombras na caverna a respeito das verdades eternas, para que possa libertar àqueles que ainda vivem a vida da DOXA e do amor intemperante, fazendo dessa forma que o verdadeiro amor possa ser dirigido às questões do espírito, liberando o homem da prisão da carne.
TIMEU
Timeu é o diálogo mais difícil de Platão pelo fato de ser uma espécie de Gênesis dos gregos. O livro apresenta em uma forma resumida pelas palavras do pitagórico Timeu, os conhecimentos de medicina, matemática, cosmologia e psicologia do tempo de Platão. De fato há uma semelhança com a narrativa bíblica porque o Demiurgo platônico cria o mundo e vê que ele é bom. No Timeu o mundo criado, o homem e os animais são obra de uma inteligência que tudo criou com bondade e racionalidade. No começo tudo estava em desordem e ao acaso na natureza, até que ela se deixou persuadir pela Inteligência. Então Deus criou tudo de maneira boa e eliminou toda forma de imperfeição. Tudo o que o Demiurgo cria é sempre o mais belo segundo o mito da criação platônico.
Em sua cosmologia não existem uma multiplicidade de universos que teriam servido de modelo para a criação Divina. Existe na verdade apenas um céu que foi o modelo do qual Deus fez do nosso uma cópia. Deus criou também a alma antes do corpo e a tornou imortal. O céu e o tempo também foram criados em semelhança com a eternidade. Antes do nascimento do céu, o tempo e os dias não existiam. O céu, segundo Platão, foi, é e será, seguindo sempre a lei dos números. Os planetas foram criados em forma de esfera e são a divindade visível.
O Demiurgo cria a alma do ser humano de uma mistura e as dividiu em um número igual ao dos astros, ensinando-lhes a natureza do Todo. Nessa parte é importante já ter lido o Fedro. Criando as almas, Deus deu a todas o mesmo nascimento e as mesmas paixões, de maneira que se os homens dominassem essas paixões viveriam na justiça; se deixassem elas o dominarem, viveriam na injustiça. Se vivessem bem, voltariam para o céu onde teriam a vida de um deus; se vivessem na injustiça, reencarnariam com forma feminina, e se persistissem, assumiriam um corpo de animal.
Mais adiante, Platão diferencia os homens que vivem da opinião e dos que vivem pelo intelecto. A intelecção ocorre em nós pela ação do pensamento científico e da opinião somos persuadidos. A intelecção vem acompanhada de uma demonstração verossímil; a opinião não aceita demonstração. Todos os homens participam da opinião; da intelecção participam os deuses e apenas uma parte dos homens. Daí nasce a realidade que tem forma imutável e não é perceptível pela vista e que só é dado ao intelecto contemplar. A outra realidade está submetida aos sentidos e é acessível à opinião unida à sensação.
A harmonia necessária entre a alma e o corpo também é enfatizada no discurso de Timeu. De nada vale se ocupar somente com questões intelectuais se o corpo é esquecido; ocupar-se também somente do corpo produz uma revolução nos elementos e produz o que é pior em um homem: a ignorância. Platão fala sobre isso no diálogo Filebo, ou seja, que o homem são é uma mistura de saber e prazer. Para tratar da alma, a filosofia é recomendada.
AS LEIS
No livro III de As Leis, o personagem O Ateniense (Platão) pergunta a Clínias qual é a origem das constituições. Esse pede ao Ateniense a explicação e esse lhe conta um mito: no princípio, já existiam cidades e constituições, mas o grande dilúvio que destruiu o mundo ( que é narrado em seu diálogo Crítias) fez desaparecerem as cidades e as constituições. O Ateniense diz que é fácil de presumir que apenas aqueles que viviam nas montanhas, isso é, os pastores conseguiram sobreviver.
Depois de algum tempo, a humanidade foi se reunindo novamente, e com a ajuda dos deuses conseguiu recuperar algumas das antigas invenções do homem. Esses homens passaram a se organizar através da autoridade do pai, que é o primeiro governo que se estabelece com a autoridade pessoal; o segundo é a reunião de clãs de famílias que se organizaram, e esses formam a aristocracia; o terceiro é o Estado misto, que Platão classifica como democracia, e por fim, o quarto que é a confederação desses três Estados associados que formam a nação.
Platão faz algumas observações sobre os Estados que existiam em sua época. Aos persas ela reprova o fato de que a educação dos reis desde o reinado de Ciro ter sido confiada a mulheres e eunucos. Com isso o filósofo acredita que os persas desde então foram dominados pela escravidão e pelo despotismo.
O legislador, segundo o discurso do Ateniense, deve procurar a liberdade, a unidade e a racionalidade para o Estado que governa. A liberdade no império persa foi perdida pela escravidão. Mas e quanto a Atenas? Será que Platão considerava essa cidade-estado como aquela que alcançou as leis mais justas? Não, porque Atenas caiu no erro oposto ao do império persa e introduziu a liberdade sem limites, isto é, a democracia. Mais uma vez, assim como em A República, Platão conclui que uma excessiva liberdade e revolução na música seja a característica de um Estado em que a liberdade destrói os costumes e as leis.
Existem nesse diálogo As Leis toda uma série de recomendações que o legislador deve impor aos cidadãos do Estado socialista imaginado por Platão. É claro que algumas dessas leis são claramente impraticáveis, como a comunhão de mulheres e filhos. Isso vai ser descartado por Aristóteles em sua Política. Platão, no entanto estava muito preocupado com a harmonia e a beleza dos pais, dos filhos e da sociedade como um todo. É por isso que ele vai escrever longamente sobre a educação.
Repetindo algumas das ideias já expostas em A República, Platão concede à música e ao movimento um grande destaque em sua Paidéia; inclusive é de se espantar que ele considerasse a educação da criança pela forma que sua mãe agisse durante a gravidez. É durante a gravidez e quando o bebê ainda está no colo que começa o processo de educação. A criança nesse estágio seria educada pelo movimento da mãe ao embalá-la e com canções de ninar apropriadas para que já nesse estágio adquirisse uma personalidade estável e corajosa, visto que Platão queria evitar ao máximo que o medo penetrasse na alma de uma criança.
A educação seria igual para meninos e meninas, com ambos aprendendo ginástica, equitação e arco e flecha. Depois de exibir uma misoginia que estava quase que ausente em suas outras obras, Platão se retrata e defende a igualdade de homens e mulheres, pelo menos nesse ponto. As mulheres devem aprender ginástica e a arte da guerra para que quando a cidade fosse atacada elas pudessem se defender e à cidade. A educação dessas crianças também deveria incluir a matemática, a poesia e a astronomia. Platão quer que o homem se prepare para a guerra para poder viver em paz. Ele acredita que o homem deva se ocupar de coisas sérias, e nada existe de mais sério do que a divindade (Demiurgo). Ora, o homem foi criado como um brinquedo da divindade, e isso é a melhor parte; portanto o ser humano deve se preocupar com a melhor parte e divertir-se com os jogos mais excelentes. Devemos, segundo o filósofo, viver sacrificando, cantando e dançando, vivendo assim em paz e contemplando alguns lampejos da verdade.
O Estado proposto por Platão em As Leis é socialista como em A República, mas em As Leis a religião possui uma importância muito maior do que na República, e ao contrário da sociedade imaginada por Sócrates nesse diálogo anterior, em As Leis a escravidão é introduzida e seu funcionamento é descrito em detalhes.
As Leis não é um livro agradável de se ler, o que pode parecer estranho para quem está acostumado a ler os diálogos de Platão como o Banquete, Fedro e Político. Platão discute o problema da educação. Nesse momento o diálogo ganha força.
A POLÍTICA E O MITO EM PLATÃO
O filósofo Eric Voegelin analisou a obra a República, de Platão, na sua obra Ordem e História. Primeiramente Sócrates busca definir o que é um filósofo de verdade. Para ele, o verdadeiro (ALETHINOS) filósofo é o homem que ama olhar com admiração (PHILO THEAMONES) para a verdade. Aqueles que conseguem ver o “um” nas “muitas” coisas são os verdadeiros filósofos. Voegelin prossegue: apenas o conhecimento do “ser em si mesmo” pode realmente pretender o título de conhecimento (EPISTEME); o conhecimento do ser na multiplicidade das coisas é opinião (DOXA).
A humanidade requer uma teoria verdadeira, pois um homem com uma teologia falsa é um homem não verdadeiro. Estar enganado na alma sobre o ser (PERI TA ONTA) verdadeiro significa que a própria mentira (HOS ALETHOS PSEUDOS) tomou posse da parte mais elevada da pessoa (382). Para a teologia ser verdadeira, Platão destaca duas regras:
1-Deus não é o autor de todas as coisas, mas apenas das coisas boas.
2- Os deuses não enganam os homens em palavras ou atos.
A filosofia para Platão é acima de tudo um ato de salvação para si mesmo e para os outros, e também um ato de julgamento. Para Voegelin, a filosofia de Platão não é uma filosofia, mas a forma simbólica que uma alma Dionisíaca expressa sua ascensão para Deus.
Em seus primeiros anos, Platão ainda estava próximo da concepção Socrática de virtude que é o conhecimento. Agora encontramos uma Sophia que é nutrida pela parte racional da alma, o LOGISTIKON, presente em todos os homens, que só é despertado quando a sabedoria prevalece sobre as paixões.
Ao todo são quatro as faculdades do conhecimento: EIKASIA, PISTIS, DIANOIA e NOESIS ou EPISTEME. A constituição transcendental da alma pode ser alcançada quando um homem percorre as formas de conhecimento, quando ele ascende do domínio das sombras (EIKASIA) para o domínio das ideias(EPISTEME), e por fim, para a visão do próprio AGATHON( aquilo que dá aos objetos do conhecimento a sua verdade a ao conhecedor o poder de conhecer).
A oposição do filósofo aos poetas deve-se ao caráter mimético da sua obras. A mimesis é repreensível por duas razões, segundo Platão: a imitação não é o original e o filósofo está em busca do original, da ideia; em segundo lugar o imitador e sua obra é o terceiro grau de afastamento. A Paideia do filósofo luta contra a Paideia do mito. Em Sócrates, a alma do homem encontrou a si mesma. Depois de Sócrates, nenhum mito é possível.
Agora Platão nos narra o seu mito da caverna. Voegelin diz que o mito prepara o conhecimento da PAIDEIA. A educação de um homem é incompleta se ele não experimentou a verdade da alma, a PERIAGOGE. Depois do homem ser solto da caverna e ter experimentado a contemplação divina, ele quer ficar lá para sempre. Esse homem (filósofo) que experimentou a eudaimonia irá sentir-se inclinado a permanecer na contemplação e não irá querer voltar para os seus companheiros prisioneiros. Haveria então a tentação de esse filósofo tornar-se apolítico. Mas ele deve descer e sacrificar-se à polis.
Ele então desce (KATABATEON). Sócrates desceu para ajudar os prisioneiros da caverna e consegue discernir as sombras (EIDOLA) das coisas reais. Como o filósofo viu o AGATHON, a polis sob seu comando será governada com uma mente desperta (HYPAR) em vez de ser conduzida como as outras Pólis como num sonho (ONAR).
A Pólis é boa quando o LOGISTIKON predomina na alma. Ela é uma timocracia quando o PHILOMIKON predomina; e é uma oligarquia quando as paixões do EPITHIMETIKON e do PHILOCHREMATON predominam. Platão analisa também a transformação da alma democrática para a despótica. Em sonhos, a parte ruim da personalidade lança-se em assassinatos, incesto e perversões. O homem sábio conhece essa possibilidade, e então não dormirá antes de ter despertado o LOGISTIKON em sua alma. Ele não permitirá a oscilação de seus desejos para que a contemplação não seja perturbada. O seu sono não será perturbado por sonhos ruins. Já o homem despótico irá deixar-se dominar pelos seus apetites e a volúpia de seus sonhos irá dominá-lo em sua vida desperta.
Por fim, há o destino da alma. Ela não pode ser destruída por seus próprios males, sendo duradoura e imortal (609), e como é imortal sua natureza é semelhante ao divino.
A NOVA PAIDÉIA DE PLATÃO EM A REPÚBLICA
O debate sobre as artes imitativas aparece no livro III da República. Platão acredita que os poetas desvirtuam o povo por sua imitação daquilo que o filósofo considera censurável, como, por exemplo, a imitação dos gemidos, os lamentos, os risos e os sons dos animais e do tempo. Do ponto de vista de Sócrates, as narrativas dos poetas só deveriam mostrar a coragem, a firmeza, ao invés de mostrar a ambição e a ganância. A poesia também deveria se preocupar com os atributos dos justos em oposição aos dos injustos. Para Platão, as narrativas de poetas como Homero são verdadeiramente poéticas, e, por causa disso, menos deveriam ser escutadas pela população que pretende ser livre e não escrava (387 a-e). Certas palavras usadas pelos poetas são uma influência negativa para a educação dos guardiões. Platão considera lamentável que os poetas façam homens respeitáveis e deuses serem atacados por acessos de risos (388 a-e). O mal que essas poesias podem causar nos jovens e nos governantes é o de fazer crer que os heróis não são em nada melhores que os homens. O mal nunca vem dos deuses, lembra-nos Platão. Por causa do costume do jovem ou governante ouvir relatos de maldade dos deuses e heróis como os descrevem os poetas, eles (jovens ou governantes) acreditarão em desculpas por suas maldades, pois os deuses os precederam (391 a-e). O governante jamais deve ser imitador de algo que os poetas propõe, mas sim, da coragem, sensatez, pureza, liberdade e todas as qualidades dessa espécie, que aprenderiam desde a infância. A humanidade (e a Pólis) precisam de uma teologia verdadeira, pois um homem com uma teologia falsa é um homem não verdadeiro. Estar enganado na alma sobre o ser verdadeiro (PERI TA ONTA) significa que a própria mentira (HOS ALETHOS PSEUDOS) tomou posse da parte mais elevada da pessoa (382 a-e). Para a teologia ser verdadeira, Platão destaca duas regras:
Primeira: Deus não é o autor de todas as coisas, mas apenas das coisas boas.
Segunda: os deuses não enganam os homens em palavras ou atos.
A nova Paideia que Platão propõe- além da imitação das virtudes citadas acima-, possui alguns elementos que constituem a sua concepção de educação e de que modo ela deve ser procedida. Na República, a sua Paideia se divide entre classes: agricultores, que devem ser educados para o serviço prático; soldados, que devem ser educados pela ginástica e pela música, para que tenham agilidade e sensibilidade para a defesa da polis; por fim, tem-se a classe dos governantes, que devem ser educados pela filosofia, pois é esta classe que vai determinar os rumos da cidade.
Platão estabelece regras para as letras que terão espaço em sua cidade, que terá, por exemplo, de ter a obrigação de ser em primeira pessoa, pois esta forma não oculta o narrador. Depois vem a questão da música, muito importante na República. A música deverá inspirar sentimentos belos, e combater o vício, a licença, a baixeza e o indecoro(401 a-e). Com isso, desde a infância a criança seria educada a amar o belo e a odiar as coisas feias e que não possuem harmonia. A ginástica é outra atividade recomendada por Platão, pois depois de haver tratado do espírito é necessário tratar do corpo. Essa ginástica seria simples, e com dois aspectos complementares: a alimentação, que deve ser sem exageros; a medicina, que só deve ser ministrada aos homens sadios. A música e a ginástica devem ser combinadas para estarem em harmonia, pois quem se dedica somente à ginástica fica rude e grosseiro, assim como quem só se dedica à música fica mole e doce em excesso. Por fim, existe a questão de quem governará a Pólis? Segundo o livro didático, entre aqueles educados na proposta apresentada, serão os melhores os mais velhos, com inteligência autoridade e sentimento patriótico. Desde pequenos deverão ser postos às provações, e os que resistirem serão guardiões. Existe também a polêmica questão da eugenia, com sua eliminação dos mais fracos. Sócrates também propõe a questão da mentira necessária: o mito do nascimento humano a partir da terra, que seria contada na infância do governante. Essa foi minha apresentação da proposta de Platão de uma nova Paideia.
A IDEIA DO BEM E DA PAIDEIA NO PENSAMENTO DE PLATÃO
A filosofia de Platão é a mais bela e completa que existe. O presente trabalho demonstrará que desde a criação de um universo como cópia da Ideia, passando por um mundo material que foi criado por um ato de bondade do Bem, até chegarmos ao filósofo que fará o papel de intermediário na comunicação desta obra de perfeição do universo aos homens que ainda estão presos na caverna, a filosofia platônica une a ideia do Bem à educação. O Bem está no centro do ensinamento da Paideia de Platão. Sua filosofia é uma inversão do princípio dos Sofistas para quem o homem era a medida de todas as coisas. Platão fará sua filosofia criar uma teologia verdadeira para o homem. Nela Deus é a medida de todas as coisas. O desejo de criar um homem que contemple a ordem da criação e através da educação passe a ter domínio de si mesmo representa todo o esforço e a beleza da filosofia platônica.
A filosofia de Platão possui dois temas que estão unidos: a noção de Bem e a Paideia. No pensamento platônico, conforme narrado em A República no mito da caverna, o filósofo é como o prisioneiro da caverna que conseguiu libertar-se e contemplou o mundo das Ideias. O Bem contemplado pelo filósofo também é visível no universo criado pelo deus-artífice- o Demiurgo-, que no diálogo Timeu fez um cosmos como cópia da Ideia, tendo com intermediários os Entes matemáticos e, por último, a realidade sensível. A criação é um Bem que o filósofo reconhece, só que esse mundo é um reflexo sem a perfeição do mundo das Ideias. A bondade da criação e a visão do noumenon é o que Platão pretende comunicar aos governantes e à população. Como foi dito acima, o Bem deve ser transmitido aos homens através de uma educação( Paideia) que tenha como objetivo formar uma alma bem ordenada. O tema está contido em alguns dos principais diálogos de Platão, porque esse filósofo sempre teve como missão estudar o mundo do phenomenon e do noumenon, ainda que ele pretenda que tenhamos mais atenção ao último, ele também vê no mundo físico uma ordenação criada por um ato de bondade do Demiurgo.
O filósofo é aquele vai ensinar aos homens o Bem visto no mundo das Ideias, e irá fazer com aqueles que ainda não contemplaram essa realidade passem a fixar, segundo Voegelin (Ordem e História, 2009, pág. 172), “o olhar de sua alma no bem em si, e devem usá-lo como um paradigma para a ordenação reta da Pólis, dos cidadãos e de si mesmos para o resto de suas vidas.” A escolha deste tema é importante para um melhor entendimento de como a filosofia platônica pretendia fazer a alma e o corpo do homem serem bons como o universo é bom.  O Bem e a Paideia precisam ser estudados juntos para que a doutrina de Platão possa ser compreendida com maior profundidade. Como esse é um tema rico em possibilidades, um trabalho desse tipo pode ser de grande ajuda. “O pensar é para o Homem o passeio da alma”
O BEM
1. O Bem como o modelo do Demiurgo: O Timeu
Platão criou uma narrativa da criação que explica as causas da natureza, a alma e a forma material. O Bem é anterior a todas as coisas do Universo. Depois vem o Paradigma Inteligível. Junto a ele está o Artífice, chamado por Platão de Demiurgo. Segundo Proclo (1997, pág13),
“Platão antes dessas coisas investiga as causas principais, ou seja, a causa produtora, o paradigma e a causa final. Ele também põe um intelecto demiúrgico sobre o universo, e uma causa inteligível na qual o universo subsiste primariamente, e o Bem, que é estabelecido de maneira anterior à causa produtora na ordem do desejável.”
No diálogo Timeu, Platão elabora um mito a respeito da criação do Universo. Narrado pelo Pitagórico Timeu, o diálogo descreve como o Demiurgo criou o cosmos como uma imagem da Ideia. Timeu abre o seu discurso com estas palavras: “tudo o que se gera necessariamente é gerado por algo: de fato, é impossível que algo se gere sem ter uma causa.” O texto do Timeu diz assim mais adiante: Na minha opinião, em primeiro lugar é preciso distinguir as seguintes coisas: o que é aquilo que é sempre e não devém e o que é aquilo que devém, sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão, pois é imutável. Ao invés, o segundo é objeto da opinião acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devém e se corrompe, não pode ser nunca. Ora, tudo aquilo que devém é inevitável que devenha por alguma causa, pois é impossível que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa. Deste modo, o Demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria. É inevitável que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo. Se, pelo contrário, pusesse os olhos naquilo que devém e tomasse como arquétipo algo deveniente, a sua obra não seria bela.” É sobre esta estrutura de cópia que se funda a possibilidade de saber algo realmente sobre esse mundo em devir. Proclo (1997,pág 283) fala do Demiurgo como um paradigma com essas palavras:
“Platão, portanto, indicando essas coisas, e através delas afirmando que a posição do paradigma do Universo não está posicionado entre uma multiplicidade de naturezas eternas, mas é a mais eterna de todas elas e primeiramente eterna, chama o mundo o mais belo de fato, mas o Demiurgo o mais excelente.”
Mais adiante, Proclo (1997, pág 286) fala sobre o Paradigma:
“Platão, de fato, demonstrou que o Demiurgo olhou para um Paradigma, e esse sendo o mais excelente, o fez olhar para o mais divino deles, o qual ele disse que o Universo foi fabricado conforme o Inteligível. Mas que o universo é também vencido pela forma e verdadeiramente imita seu Paradigma é manifesto pelo que é dito agora. Porque se o mundo é uma imagem, o universo é assimilado ao Inteligível. Pois o que não é diferente, mas similar, é uma imagem. Você tem então o universo sensível, a mais bela das imagens; o universo intelectual, a melhor das causas, e o universo Inteligível, o mais divino dos paradigmas.”
A ordem cósmica que revela-se aos sentidos, só pode ser reproduzida por uma História narrada. Um saber que vá além dessa história estaria em contraste com a nossa natureza humana. Passar do não-ser para o ser já é o primeiro ato de bondade de Deus. Esse mesmo Deus não é de forma alguma invejoso, pois quis que todas as coisas se tornassem ao máximo semelhantes a Ele. O universo é belo, desprovido de toda imperfeição e semelhante ao Artífice. O Demiurgo então criou o corpo do Cosmos juntando elementos como a água, o ar, a terra e o fogo, e unindo estes elementos em uma proporção certa, tornou-o imune à velhice e às doenças. A figura que melhor se adequou a esse corpo foi a esférica, com uma revolução em torno de si mesmo e com rotação circular. Este mundo criado não tinha necessidade de nenhum outro órgão. Na sequência do diálogo, o Demiurgo cria a alma antes do corpo, pois o elemento mais velho não pode estar submetido ao mais novo. O Artífice viu que a sua criação era boa, uma vez que a alma era eterna, tentou adaptá-la ao mundo, porém, viu que era impossível. Fez, então, uma eternidade una e imóvel que é o tempo que progride segundo a lei dos números. Criando os planetas e um Sol que nos ilumina, Deus fez os seres humanos participarem do Número.
.A CRIAÇÃO DO MUNDO SENSÍVEL
Platão diz que no início havia elementos de água, ar, fogo e terra, porém sem qualquer equilíbrio. Elas se encontravam sem razão e sem medida. Quando o Demiurgo começou a organizar o universo, esses elementos já tinham forma própria, mas se achavam em uma condição em que era natural que estivessem porque Deus estava ausente. A tarefa do Demiurgo era, portanto, levar tal massa informe da desordem à ordem. Segundo Reale “Deus os produz e os constitui, de modo belo e bom, operando por meio de formas números.” O mundo corporal nasce de uma combinação entre necessidade e de inteligência. De acordo com o texto de Reale, Platão criou as seguintes analogias para descrever a matéria:
Necessidade, causa errante, receptáculo que tudo gera, aquilo em que se gera o que se gera, potência que não se esgota ao receber várias coisas que recebe; natureza sempre idêntica a si mesma no seu fundamento; realidade amorfa; realidade participante de modo complexo do inteligível; realidade difícil de compreender, obscura e incompreensível; realidade em si invisível, mas visível nas suas várias manifestações; realidade comparável a uma nutriz, a uma mãe, ao material de impressão, ao ouro plasmável, ao material mole modelável de várias maneiras e a líquido inodoro que recebe os vários odores.
Segundo Proclo (1997, pág 14), a natureza corpórea é produzida com Formas, e dividida por números divinos; a alma é também produzida pelo Demiurgo e é preenchida com raciocínios harmônicos, e com símbolos divinos e demiúrgicos.”
O corpo também possui dignidade por causa da iluminação da alma. De acordo com Proclo (1997, pág 617), “a alma subsiste com proporções harmônicas e o Todo da natureza corporal formada está em amizade com ela através da analogia, que é harmoniosamente composta. Nenhum laço pode ser mais belo, divino e perpétuo, pois apesar da alma ter sido gerada antes do corpo, Platão concedeu a este a essência, a harmonia, a figura, a potência e o movimento. O Demiurgo quando colocou o Intelecto na alma e a alma no corpo, criou o Universo.”.
A TERRA E SEUS ELEMENTOS GEOMÉTRICOS
O Demiurgo criou o mundo inspirado pelo modelo ideal eterno. Conforme foi estabelecido por Platão acima, aos elementos que formam o universo, como a água, o fogo, o ar e a terra, ele os associou a elementos geométricos como o tetraedro (fogo), o hexaedro (terra), o octaedro (ar), o dodecaedro (modelo dos cosmos) e o icosaedro (água).
Na República, Platão vai fazer o filósofo ensinar ao povo que deve-se estudar primeiro àquelas coisas que estão no alto. A geometria fará parte da Paideia que será ensinada na Pólis. Esta disciplina será ensinada junto com a astronomia e a estereometria. A ciência deve começar estudando o que está no céu. Sócrates diz que a geometria nos faz estudar as coisas celestes. Ela promove a contemplação e faz parte de um programa de estudos que têm como objetivo fazer a alma mirar o Ser e o invisível, sem o qual a educação não faz sentido.
O PODER DO DEMIURGO
Segundo esta passagem do Timeu, “o Demiurgo produz o bem ao ordenar o caos dos elementos originais, quando realiza o Bem e o melhor e produz o que é belíssimo.”
Platão define isso no diálogo que querer fazer o bem é tornar as coisas ordenadas. Ainda no Timeu, o filósofo grego diz que a ciência e a potência de Deus consiste em misturar os muitos em um. O Deus-Artífice platônico construiu um universo a partir de uma desordem e de sua ação produziu-se o Bem. Em uma passagem do mesmo diálogo, Platão diz que “Deus possui de maneira adequada a ciência e, ao mesmo tempo, a potência para misturar muitas coisas na unidade e de novo dissolvê-las da unidade em muitas coisas. Mas não há nenhum dos homens que saiba fazer nem uma coisa nem outra, nem haverá no futuro.” O homem pode contemplar a Criação e tentar, segundo Reale (2009, pág 530), “imitar nesse mundo imagens da Ideia através da técnica e da arte” . O homem que primeiro vai fazer essa contemplação do Mundo das Ideias e transmiti-las aos outros homens é o filósofo. Isso se dará no diálogo A República.
O FILÓSOFO CONTEMPLA O BEM: A REPÚBLICA
Sócrates torna-se a figura central que vai expor a doutrina platônica da contemplação do Bem e da Ideia. Em um determinado momento do diálogo, Glauco, ansioso, pergunta a Sócrates sobre como ele crê que o homem possa conhecer o Bem. Sócrates, então, esclarece que existem coisas do mundo visível que são múltiplas, enquanto a cada uma delas corresponde uma ideia que é única, que chamamos a sua essência. As primeiras diremos que são visíveis, mas não inteligíveis, e de outra forma diremos que as Ideias são inteligíveis, porém, não visíveis.
Sócrates então pergunta por que meio vemos aquilo que é visível, e ouve como resposta que é por meio da visão. Ora, o homem percebe os objetos pela visão por causa da luz, e essa luz tem como causa o fato dela ser gerada por um deus do céu. Esse deus é o Sol. Ele é o filho do Bem na ordem da criação platônica. O homem, segundo Damáscio ( apud Proclo, pág 326), ao “aproximar-se do imenso princípio deve contemplá-lo em um silêncio místico.”
O diálogo prossegue. Sócrates explica que quando nossos olhos são iluminados pela luz do Sol, nossa alma passa a ser iluminada pela verdade do Ser ela compreende e conhece. Entretanto, se ela se fixa em objetos na qual se misturam as trevas da noite, ela passa a ter meras opiniões sobre aquilo que nasce e morre. A visão e a luz não podem ser igualadas ao Sol, da mesma forma que a ciência e a verdade ainda que se assemelhem ao bem, elas não são o Bem em si mesmo. Segundo Eric Voegelin (2009, pág 173), “essas são as proposições referentes ao sol que servem como analogon para tornar inteligível o papel do Agathon no domínio noético (noetos topos).”Prossegue Voegelin dizendo que “ o Agathon não é nem intelecto (nous), nem seu objeto (nooumenon), mas aquilo que dá aos objetos do conhecimento a sua verdade e ao conhecedor o poder de conhecer.”
No Timeu, Platão já havia falado sobre a visão com essas palavras:
“em meu entender, a visão foi gerada como causa de maior utilidade para nós, visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros, o Sol e o céu. Foi o fato de vermos o dia e a noite, os meses, os circuitos dos anos, os equinócios e os solstícios que deu origem aos números que nos proporcionaram a noção de tempo e a investigação sobre a natureza do universo. A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espécie mortal, oferecido pelos deuses. Por que razão havemos de celebrar os outros que são inferiores a estes, pelos quais só um não-filósofo choraria, se ficasse cego, com lamentos em vão?”
Começa agora o Mito da Caverna. Sócrates quer que imaginemos um grupo de prisioneiros algemados pelas pernas e pescoço. Eles só podem olhar para a parede da caverna e nunca para a sua entrada. Na parede da caverna são refletidas imagens de homens e animais. Essas não passam de sombras de objetos reais de fora da caverna, mas aqueles prisioneiros não sabem disto. Imaginemos então que um dos prisioneiros conseguisse sair da caverna. A primeira coisa que lhe aconteceria é que seus olhos não estariam acostumados à luz do sol. O que ele teria que fazer seria primeiro olhar para as sombras dos objetos, depois para os homens e animais e, por último, para as estrelas e a lua no céu. Depois que ele conseguisse fazer isto, a contemplação do Sol seria possível.
O FILÓSOFO DESCE À CAVERNA
Após ter contemplado o Mundo das Ideias, o prisioneiro que se libertou (que é a imagem do filósofo), tem vontade de ficar fora da caverna para sempre, já que a realidade da mesma não mais o atrai. Porém, este homem deve descer novamente à caverna e ensinar aos que ainda não contemplaram a verdade o que ele viu. Não é uma tarefa simples, pois envolve o risco dele ser mal interpretado. Mas ele tem que começar a ensinar aos seus companheiros o seu programa da Paideia. A caverna é uma imagem da Pólis, e esta na concepção de Platão “tem o direito de exigir o sacrifício do filósofo porque ela lhe proporcionou educação que deve habilitá-los a unir a Pólis.” O filósofo viu o Agathon, e a “Pólis sob seu comando será governada com uma mente desperta (hypar) em vez de ser conduzida, como a maioria das Pólis de hoje, obscuramente como num sonho (onar).”.
O EROS COMO O AMOR PELO BEM: O BANQUETE
Este divertido diálogo tem como o tema principal uma discussão sobre o Eros. Vários são os participantes do banquete, mas o que nos interessa é o discurso do Sócrates. Vamos a ele. Sócrates define primeiramente Eros como o desejo indefinido daquilo que nos falta. Sócrates faz o outro participante do diálogo, Agaton, lembrar-se do que havia dito em seu discurso de que Eros é carente do belo. Questionado por Sócrates, Agaton confirma que Eros é carente do belo e que o belo é o bem. Neste momento do diálogo, Sócrates interrompe a conversa com Agaton para relembrar-se de um diálogo que teve com a sacerdotisa Diotima. Essa lhe fez perguntas na ocasião sobre Eros, e Sócrates a responde que Eros era belo e que pendia ao bem. Diotima diz, contrariamente a Sócrates, que Eros não é belo nem bom. Ora, o não-belo não quer dizer que Eros é feio, esclarece Diotima. Mais adiante, Diotima faz Sócrates reconhecer que Eros deseja o bem e o belo, que são coisas que lhe faltam. Eros está entre o mortal e o imortal. Ele é um daimon, que é um intérprete e mensageiro. Ele leva aos deuses os assuntos humanos e aos humanos ele traz mensagens divinas. Leva preces e sacrifícios e traz respostas aos sacrifícios. Diotima diz que Deus e o homem não se misturam, mas que é através de Eros que este contato é possível. Mais adiante, Diotima conta a mitologia de Eros, que é filho de Penúria e Caminho. Ele é carente de beleza, mas herdou do pai o pendor por coisas belas e boas. Ele ocupa o meio termo entre o saber e a ignorância. Deus não filosofa, pois já sabe de tudo. Os ignorantes não filosofam nem desejam ser sábios. Os ignorantes não filosofam uma vez que não sentem que lhe falta alguma coisa. Sócrates então questiona Diotima sobre quem filosofa. Ela o responde: quem se encontra no meio entre o saber e a ignorância. Eros é um deles. Eros é a posse perpétua do bem. Segundo Jaeger (1995, pág 740), “o Eros socrático é o anseio de quem se sabe imperfeito por se formar espiritualmente a si próprio, com os olhos sempre fitos na Ideia. É, em rigor, o que Platão entende por filosofia: a aspiração de conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem.” Agora surge, por fim, o papel do educador. Para terminar esse capítulo, uma citação de Voegelin faz-se necessária:
“Apontamos antes que permanece um mistério o modo como o homem, na dimensão temporal do ser (thnetos de Platão), pode experimentar o eterno. Há, então, a necessidade de um mediador que interprete e diga aos deuses o que está acontecendo entre os homens, a aos homens o que está acontecendo entre os deuses. O papel de mediador é atribuído por Platão a um espírito muito poderoso, pois todo o reino do espiritual (pan to daimonion) jaz entre (metaxo) Deus e o homem. Este espírito (daimon) deve misturar, pela força de sua posição de intermediário, o que não se mistura, à medida que está em confronto objetivo, e os dois polos ele há de fundir num grande todo. O simbolismo discretamente aponta para o cerne da matéria: é o homem que não é simplesmente thnetos, mas experimenta em si mesmo a tensão para o ser divino e, então, está entre o humano e o divino. Quem quer que tenha esta experiência se eleva acima do mortal e se torna um homem espiritual, o daimonios aner.”
A PAIDEIA
A educação como um ato de anamnese: o Menon e o Fédon
Menon pergunta a Sócrates: e de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes exatamente o que é? Pois procurarás propondo-te que tipo de coisa, entre as coisas que não conheces? Ou ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como saberás que isso é aquilo que não conhecias? Sócrates responde com o argumento de que a alma já renasceu diversas vezes e que quando passou pelo Hades aprendeu muitas coisas, e que quando a alma renasce é possível que ela se lembre daquilo que já viu. Procurar e aprender, para Sócrates, são a mesma coisa, ou seja, uma rememoração.Sócrates, então, propõe demonstrar a sua tese com o auxílio de um escravo de Menon. Com o auxílio da matemática, que faz parte do programa da Paideia, Sócrates faz o escravo traçar desenhos geométricos no chão, e como no papel de professor, ele vai aos poucos trazendo à mente do escravo conceitos que esse último parecia ignorar. Com a sequência do ensinamento, Sócrates leva o escravo à aporia. O Filósofo lembra a Menon sobre a ironia que este fez a ele dizendo que ele parecia com um peixe-elétrico que entorpecia quem se aproximava. O fato do escravo estar entorpecido por experimentar a aporia como faria o peixe-elétrico não quer dizer que tenhamos causado algum dano a ele. Logo após este aparente impasse, o escravo “rememora” a solução do problema matemático que Sócrates o propôs. Possuir ciência, para Sócrates, é relembrar-se do que já sabíamos de vidas passadas.
No Fédon, Sócrates ensina que o saber é uma reminiscência. Ele dá um exemplo: a lira traz à mente das pessoas a imagem do amor, dessa maneira quando o apaixonado vê um destes instrumentos, ele se lembra da pessoa amada. E isso é uma forma de anamnese. A alma cada vez que renasce esquece temporariamente o que sabia, e é por isso que a Paideia vai fazer o homem instruir-se pelo método da recordação.
PAIDEIA SOFÍSTICA OU PAIDEIA SOCRÁTICA?
PROTÁGORAS
Sócrates é surpreendido um dia com o chamado de seu amigo Hipócrates. Esse o avisa que na cidade encontra-se o famoso sofista Protágoras. Sócrates percebe a excitação de seu amigo com o fato, mas tenta fazê-lo se acalmar com algumas perguntas. Entre elas é saber no quê o ensinamento de Protágoras melhora ou transforma a pessoa? Hipócrates o responde dizendo que Protágoras transforma seus alunos em sofistas. Isso não agrada a Sócrates. Hipócrates acrescenta que os sofistas ensinam a seus alunos como tornarem-se excelentes oradores, mas Sócrates o faz ver que tornar-se orador para defender algo indefinido não será de muita utilidade, e o adverte que a aula de Protágoras pode colocar sua alma em risco. Os sofistas não são pessoas em que se possa confiar.
É a vez de Protágoras apresentar-se e expor sua doutrina. Ele vê os sofistas como pessoas que vestem a roupagem da poesia, da música e do atletismo. Estas atividades faziam parte da Paideia dos sofistas e isso lhes causava grande orgulho. O objetivo do sofista é tornar a pessoa melhor, diz Protágoras. Enquanto outros sofistas ensinam aos seus alunos a arte do quadrivium, Protágoras se preocupa mais com aulas sobre política e assuntos do Estado.
Sócrates por sua vez acha impossível que Protágoras possa ensinar a arte da política a alguém porque os assuntos de Estado podem ser dominados por pessoas de qualquer profissão, e ele prossegue dizendo que é muito difícil que o talento político do pai possa ser transmitido ao filho, e dá como exemplos os filhos de Péricles presentes no diálogo. Protágoras responde à observação de Sócrates com um mito. No início, quando os deuses criaram a raça humana, dois Titãs, Prometeu e Epimeteu ficaram responsáveis por distribuírem habilidades aos humanos. Epimeteu ficou com esta responsabilidade e dotou humanos e animais com algumas características. Porém, o estado do ser humano foi considerado lamentável por parte de Prometeu. Em um gesto desesperado, ele roubou o fogo divino aos deuses e o deu aos seres humanos. No entanto a arte política era desconhecida do homem. Prometeu, então, roubou o fogo de Hefaístos e a arte de Atena e novamente deu aos humanos. Nasceu, assim, a religião. O homem, mesmo assim, continuou a viver em grupos espalhados sendo destruídos por animais selvagens. Faltava-lhes a arte da política. Zeus então enviou Hermes para distribuir justiça a todos sem exceção. Todo o ser humano compartilha deste quinhão da Justiça, caso contrário não seriam humanos.
Protágoras insiste no valor da educação e na possibilidade do ensino da virtude dando como exemplo o fato dos pais preocuparem-se tanto com a educação dos filhos, inclusive pagando a professores para essa tarefa. Ele questiona o porquê de Sócrates se espantar com tudo isto. Sócrates, por sua vez, apenas direciona o diálogo para o problema do saber e do conhecimento. Ele se preocupa com o fato de muitos possuírem o saber, mas acabarem sendo arrastados e vencidos pelo prazer. A Paideia socrática acredita que um homem com um conhecimento verdadeiro sobre o mal jamais agirá injustamente. Protágoras concorda com a opinião de Sócrates de que a sabedoria e o conhecimento são as coisas mais poderosas. Sócrates o faz ver que mesmo que isso seja algo que a maioria concorda isso não faz necessariamente com que vivam desta maneira. A pessoa que recusa o bem é aquela que escolhe o mal maior em detrimento do bem menor. Ser vencido pelo prazer é uma ignorância, e só age dessa forma quem não tem o conhecimento. Ninguém busca voluntariamente o mal. A Paideia socrática pretende fazer do conhecimento do verdadeiro e do Bem uma maneira de evitar a ignorância de uma vida vivida pela busca de prazeres.
A PAIDEIA COMO FORMAÇÃO DO VERDADEIRO POLÍTICO: GÓRGIAS
No Górgias uma batalha é travada entre dois políticos com formações diferentes: Sócrates e Cálicles. O começo do diálogo é um confronto dialético entre Sócrates e dois sofistas, Górgias e Polo. Sócrates consegue vencer os dois com relativa facilidade. Presente na cena está o experiente político Cálicles, que logo pergunta a Querofonte se Sócrates não está brincando. Ele percebe que o que Sócrates ensina pode virar o mundo de cabeça para baixo. Sócrates o responde dizendo que ele e Cálicles estão apaixonados por duas coisas diferentes: ele pela filosofia, e Cálicles pelo povo. A fúria de Cálicles deve-se ao fato de Sócrates ter dito anteriormente que cometer injustiça é pior do que sofrê-la. Para Cálicles, nenhum homem desejaria sofrer injustiça a não ser um escravo. Como uma espécie de Nietzsche avant la lettre, ele julga que este tipo de convenção foi feita pelos fracos para dominarem os mais fortes. A lei da natureza é implacável e supõe o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. O homem forte rompe com os grilhões da lei e da moral. Cálicles julga que Sócrates está com o espírito amolecido por causa da filosofia, pois essa é tida por ele como sendo adequada apenas à juventude, e nunca ao homem amadurecido.
Segundo Jaeger (1995, pág 668), “este esboço de uma doutrina da sociedade baseada na teoria da luta pela sobrevivência deixa à educação um papel inferior. Sócrates opunha a filosofia da educação à filosofia da força. Era a Paideia que era para ele o critério da felicidade humana, contida na kalokagathia do justo”
Cálicles possui uma alma tirânica e faz uma espécie de advertência a Sócrates. Se Sócrates fosse acusado injustamente por causa de seus ensinamentos filosóficos, mesmo que o acusador fosse um patife, Sócrates só conseguiria balbuciar palavras desconexas em sua defesa, e se fosse condenado à morte, teria necessariamente que morrer. Cálicles crê que Sócrates seria um daqueles que poderia levar uma bofetada impunemente.
Sócrates mantém a calma e faz uma pergunta ao político Cálicles: é a mesma pessoa que ele chama de melhor e superior? É o múltiplo superior ao Uno? Cálicles responde que sim. Ele acredita que o superior deve ter a cota maior, mas não de coisas como alimentos, bebidas e sapatos como Sócrates ironicamente disse, mas sim do poder político. Mas e o problema do governo de si mesmo, questiona Sócrates. Os melhores teriam mais do que si mesmos. Cálicles explode. Nas palavras de Voegelin (Ordem e História, 2009,pág 96),”um homem não deve governar a si próprio. Ao contrário, o bem e a justiça consistem na satisfação dos desejos. Luxo, licenciosidade e liberdade ( tryphe, akolasia, eleutheria), se tiverem meios para se manter, são virtude e felicidade.”
Desta Paideia distorcida pelo político Cálicles, Sócrates irá propor a sua antítese, que é a Paideia que tem junto a ela a noção de Bem. A satisfação de nossos desejos só é permitida quando algo nos falta quando estamos com saúde. Quando estamos doentes nunca podemos satisfazer nossos desejos das coisas. A mesma regra, diz Sócrates, aplica-se à alma. Quando ela não possui inteligência, é indisciplinada, injusta e ímpia, torna-se necessário que refreemos seus instintos para que ela melhore. Porque o mal que está na ação procede do falso que está no conhecimento, como diz Proclo (1997, pág 926).Cálicles não quer ser disciplinado pela Paideia.O prazeroso e o Bem não andam juntos, conforme Sócrates explica, e Cálicles vê-se obrigado a concordar. O verdadeiro político educado pela Paideia respeitará a Deus e aos homens. Essa educação que o político ensinará ao povo produzirá homens melhores.
O PROGRAMA DA PAIDEIA: A REPÚBLICA E AS LEIS
Em A República, Platão através de Sócrates vai definir a Paideia de seu Estado ideal. Sabemos que a poesia era muito valorizada pelos Sofistas, principalmente Homero. É a partir de uma noção de uma verdadeira teologia que Platão fará sua crítica da poesia de seu tempo. Homero será criticado por suas descrições “caluniosas” do Hades. Palavras como as que os poetas usam para descrever este local podem ser bonitas, mas não devem ser ouvidas por homens livres. Nomes terríveis que designam o além-túmulo, além de reproduções de gemidos e lamentos devem ser eliminados. Da mesma forma, o riso de homens e deuses não podem ser reproduzidos. Platão, cujo pensamento coincide com os dramaturgos Ésquilo e Sófocles, quer que seja ensinada através da poesia a bondade dos deuses. Ele reprova Homero por atribuir diversos vícios aos deuses. É impossível que o mal venha deles. Uma crítica também será feita à imitação. No Estado ideal de Platão, aqueles que forem os guardiões devem se ocupar de garantir a liberdade do Estado, portanto não devem imitar outra coisa a não ser a coragem, a pureza, a liberdade e etc. Tudo aquilo que é baixo não pode ser imitado. Isto inclui a imitação de escravos, de gemidos, das dores da maternidade, profissões como ferreiros, o relinchar dos cavalos, o murmúrio dos rios, etc.
As profissões devem ser especializadas, evitando que um profissional exerça mais de uma atividade. Platão ensina que a música tem uma importância fundamental na sua Pólis. Todo tipo de música sem harmonia ou que produza uma cidade efeminada são proibidas. A música deve ser harmoniosa para que a criança cresça com uma alma sadia e amando o Bem. O mal seria odiado desde cedo por causa da sua fealdade. A música na Pólis platônica deve reproduzir o som da música das esferas celestes. A harmonia do céu criado pelo Demiurgo é a inspiração para a criação de sons que unam a música à astronomia. Este é o programa pitagórico. Depois da música, o jovem deve aplicar-se à ginástica, mas a educação musical não deve ser excluída. Alguém que só escutasse música e não exercitasse o corpo ficaria frouxo; aquele que só praticasse exercícios físicos, mas não desse atenção à alma ficaria embrutecido. Segundo Jaeger (1995, pág 810) “a sinfonia da alma é o resultado de uma combinação acertada de dois elementos: a música e a ginástica. Esta cultura coloca o espírito em tensão e o alimenta de belos pensamentos e conhecimentos afrouxando as rédeas da parte corajosa por meio de exortações contínuas e educando-a pela harmonia e o ritmo.”
A educação das mulheres assemelha-se à dos homens. As mulheres devem estudar música, ginástica e a arte da guerra. Platão reconhece que homens e mulheres têm naturezas distintas. A solução que ele oferece para a divisão do trabalho é que cada profissão será destinada a determinado sexo de acordo com as aptidões de cada um dos dois; porém, se ambos os sexos forem competentes naquele ofício, o fato da mulher dar à luz e do homem procriar será indiferente.
Nas Leis, Platão propõe a sua pedagogia para a infância. As mães devem desde quando estiverem com seus filhos recém-nascidos, começarem a balançá-los para que se acalmem e adormeçam. Esse balanço produziria na alma da criança um frenesi semelhante ao de Baco. Platão preocupa-se com isto porque ele quer eliminar da alma da criança qualquer noção de medo. Mais tarde, a criança, tanto meninos quanto meninas receberão um treinamento sobre o manejo de armas.
A FILOSOFIA SUPERA A POESIA COMO MODELO DE EDUCAÇÃO
No livro X da República, Platão faz um ataque ao modelo de Paideia feita pela poesia, modelo esse que era muito utilizado pela sofística. A principal crítica é feita à arte da mimese dos poetas. Na mente de Platão, o Artífice é aquele que cria as coisas que estão no céu e na terra; aquele que criou os deuses e o Hades e o que existe embaixo da terra. Os objetos criados pelo Artífice foram criados à imagem da Ideia. Ora, o marceneiro em sua profissão também é um Artífice, porque também cria um objeto. Porém, um pintor jamais pode ser chamado de Artífice, porquanto é apenas um imitador da obra do Artífice. O mesmo se dá com o poeta para Platão, que também não passa de um produtor de imitações. Criar é ser paradigmático como o Demiurgo. Imitar é apenas “energizar”. Não é a mesma coisa criar pela existência, e “energizar” pelo conhecimento, diz Proclo (1997, pág 287). Segundo o filósofo de Constantinopla, “a alma produz vida pela existência, mas produz vida artificialmente pelo conhecimento. Criar é obra do Demiurgo, porque a geração é a primavera do Ser.”
Platão pela boca de Sócrates questiona: qual cidade tornou-se melhor pela poesia de Homero? Era ele um educador de Homens? Não, segundo Platão. Jaeger (1995, pág 982) nos ensina sobre este ponto: “o repúdio da poesia não significa tanto o seu afastamento violento da vida do homem, como uma delimitação nítida da sua influência espiritual para quantos aderirem às conclusões de Platão. A poesia estraga o espírito dos que a ouvem, se eles não possuírem o remédio do conhecimento da verdade. Isto quer dizer que se deve fazer descer a poesia para um degrau mais baixo. Continuará a ser matéria de gozo artístico, mas não lhe será acessível a dignidade suprema: a de se converter em educadora do homem. O problema de seu valor aborda-se no ponto que necessariamente tinha de ser o decisivo para Platão, o da relação entre a poesia e a realidade, entre a poesia e o verdadeiro Ser.”
A filosofia tornar-se-á a base da educação. O filósofo é aquele que saber tornar os homens melhores e conhece o tema sobre o qual está falando.
DEUS COMO A MEDIDA DE TODAS AS COISAS: AS LEIS
Fazendo um contraponto a Protágoras para quem “o homem era a medida de todas as coisas”, Platão faz de Deus o centro de sua Paideia. Jaeger escreve: (1995, pág 876) “ na República, a ideia do Bem é a norma absoluta que serve de base à noção da filosofia como suprema arte da medida, a qual aparece muito cedo no pensamento platônico e nele se mantém até o final.”
No final do diálogo As Leis, Platão conclui que a astronomia, que é a ciência abençoada, é um meio de contemplação da divindade. Segundo suas palavras: “supondo que todas essas coisas são como dissemos, qual a finalidade de aprendê-las? Para dar conta desta questão é preciso nos referirmos ao elemento divino presente no mundo gerado, que consiste da espécie mais excelente e mais divina de coisas visíveis que a Divindade permitiu aos seres humanos observar”. Ele prossegue:“precisamos inclusive, deter um conhecimento apurado da exatidão do tempo, captar como ele cumpre com precisão todos os fenômenos celestes. Se o fizermos, então todos os que creem na verdade de nosso raciocínio segundo o qual a alma é a uma vez mais velha e mais divina que o corpo deverão reconhecer que o adágio tudo está repleto de deuses é cabalmente correto e suficiente e, ademais que nunca somos negligenciados devido ao esquecimento ou incúria dos seres que nos são superiores”.
A FILOSOFIA PLATÔNICA E O ENSINO DA BELEZA DO UNIVERSO
ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO
Platão nos ensina que o universo foi criado pelo Bem, que também criou o princípio material. O Demiurgo é um deus que molda a matéria. No cosmos platônico, o mundo é bom, pois foi moldado pelo Demiurgo com base no Paradigma Inteligível. Na criação do homem, a beleza também está presente. Isso foi muito enfatizado por Proclo, que não deixa de nos recordar isto, mas sempre mantendo-se fiel à concepção do seu mestre Platão de que o corpo não tem a mesma dignidade da alma, o que não quer dizer que haja nele algum elemento de maldade como os gnósticos da era cristã pregavam. O platonismo não é um sistema pessimista como o gnosticismo. É curioso como a filosofia de Platão foi acusada por alguns filósofos cristãos de criar uma noção errônea da matéria. O que vimos foi que a união da alma e do corpo é algo desejada na ordem de sua filosofia, semelhante ao hilemorfismo aristotélico. A coleção de citações sobre como o bem está presente na matéria citadas por Reale acima demonstram como Platão a tinha em grande estima. “A realidade da matéria é invisível ao mesmo tempo em que a vemos em suas várias manifestações”, diz o filósofo grego. Platão é muito científico, porque mesmo a ciência moderna ainda busca a essência da matéria. A concepção da matéria em Platão é muito importante de se ter em mente contra aqueles que quiserem fazer da filosofia de Platão uma antecipação do gnosticismo da era cristã. Depois de haver descrito essa ordem de maneira tão bela, Platão enfatiza que o noumenon deve ser a base do conhecimento para o homem. Platão queria uma ciência não do mundo físico, mas sim do mundo eterno das Ideias. O que primeiro deve ser feito é a libertação do mundo das aparências do mundo físico. O homem sem a contemplação da Ideia é semelhante a um prisioneiro da caverna que só enxerga as sombras. Quem fará a descoberta do mundo das Ideias e as comunicará aos homens que ainda estão presos às aparências é o filósofo. No mito de Eric Voegelin, o filósofo é como o daimonios aner, ou seja, o homem espiritual. É esta a função do filósofo em A República, pois ele  é quem faz a intermediação do mundo divino com o mundo dos homens. Este homem espiritual, entretanto, segundo Voegelin, não poderá ser apolítico e viver preso à contemplação da Ideia, pois a cidade precisa dele.
A polis platônica necessita de cidadãos educados, principalmente para o surgimento de governantes com a alma ordenada. Platão, portanto, criou um método de educação que visa a ensinar aos homens o Bem contemplado antes dessa vida, pois seu pensamento exige uma preexistência da alma. Caindo no mundo físico, a alma esquece-se do que já havia aprendido. Com a Paideia, a alma pode recordar-se do que já sabia através do método da anmenese. Este método é ensinado no diálogo Menon. O método de relembrar-se leva o estudante à aporia, que é um impasse. Cabe ao professor ensinar ao aluno como sair desta situação, e através da resposta, este último encontrará uma solução de que nada mais é do que uma recordação de algo que ele já sabe desde uma vida passada no mito platônico.
A filosofia e a Paideia de Platão são majestosas, pois conseguem unir o espiritual ao mundo físico sem cair nos problemas que Aristóteles enfrentou, pois este tinha muita dificuldade de imaginar uma sobrevivência da alma sem o corpo. Platão quer que os homens através da educação tenham uma alma sadia da mesma forma que o corpo, pois ambos nos recordam da bondade de Deus. O universo é bom, a alma unida ao corpo é algo desejável e a harmonia da ordem divina está presente em tudo o que vemos.
CONCLUSÃO DO PENSAMENTO PLATÔNICO METAFÍSICO
A criação do universo como cópia da Ideia foi algo bom e belo. Platão apresentou-nos uma teologia em que os deuses são bons. No Timeu, Deus é considerado bom (agathos), livre de inveja (Peri oudenos oudepote phthonos), melhor das causas (o d`aristos tôn aitiôn) e produz o mais belo (to kalliston). O homem foi definido como o mais belo dos Inteligíveis.
Sua Paideia cria um homem que desde criança aprende a experimentar o Bem. O trabalho concluiu que o papel do filósofo como educador é o de transmitir a beleza da Ideia e do Cosmos àqueles que ainda são prisioneiros do mundo dos sentidos. A Paideia começa pela contemplação através do sentido da visão da Ideia eterna. O papel do educador é o de ensinar aos alunos os objetos do intelecto (nooumena) e começar o ensino através do processo da anamnese. O trabalho atingiu o seu objetivo de explicar esta ligação entre o Bem e a Paideia. O filósofo, tal como lemos no diálogo O Banquete, é aquele que está sempre apaixonado e com os olhos sempre mirando na Ideia. Ele deseja que os membros da Pólis tenham em mente o Bem do mundo eterno. A Paideia atinge seu objetivo quando faz do homem, que é imperfeito, um ser que deseja aprimorar-se espiritualmente. Este trabalho representou uma grande realização intelectual para mim. A filosofia de Platão é a mais perfeita que existe e ele é a grande inspiração para que eu possa exercer o papel de filósofo.
Aqui finalmente se encontram os neoplatônicos, Tomás de Aquino, Heidegger, Schelling e Hegel; cada um com seus recursos e suas habilidades, com suas insuficiências e suas debilidades no que tange à concepção do Ser mesmo no sentido do Ser enquanto Ser para além de toda representação e de toda informação imediata pura e simples. Concepção que nos quadros da novíssima episteme se apresenta não só como possível, mas também se mostra como plenamente praticável; o que, no entanto exige uma restabelecimento da Metafísica como ciência rigorosa fundada pura e simplesmente na liberdade, essa que enquanto Ser é e tem que ser também conceber, i.é, seu próprio conceber enquanto Ser. Caso em que, por fim, agora nos quadros da episteme pós-moderna, fundada na Teoria da Comunicação, a Metafísica mais uma vez se legitima enquanto ciência, enquanto ciência rigorosa, apresentando assim uma definição real que abarca conscientemente sua essência para além do Niilismo e da representação. Por conseguinte, se mostrando como a Ciência do Metafísico ou do Ser enquanto Ser que, como unidade originária do conceber e do Ser, não é senão liberdade; não liberdade metafísica, mas liberdade do Metafísico. Assim, como unidade de sua definição nominal (Ciência do Metafísico) e de sua definição real (Ciência da Liberdade), um conceito provisório da Metafísica se mesma apresenta-la como Ciência da unidade comum ou da comunidade do conceber e do Ser. Essa a ciência do fundamento do fundamento, i.é, do próprio Metafísico enquanto Metafísico; a qual, porém, ainda exige ser desenvolvida.
A perspectiva assim aberta de a Metafísica ser entendida a um tempo como Ciência do Metafísico e como Ciência da Liberdade (do Metafísico) torna possível uma dupla retomada e desenvolvimento da Metafísica como ciência rigorosa nos dias atuais, de um lado como uma Normativa do Ser e de outro como uma Ontologia do Agir (para se utilizar aqui duas expressões. Retomar, em novo estilo teórico, o exercício de uma memória metafísica que reencontre o ser através da densa rede dos objetos científico-técnicos que nos envolve sempre mais, essa a tarefa maior que se apresentará à filosofia se ela, como acreditamos, sobreviver na nova civilização que se anuncia.
BIBLIOGRAFIA
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PROCLO. The Commentaries of Proclus on the Timaeus of Plato. Kessinger Pub, 1997.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
VOEGELIN, Eric. Anamnese. 1ª Ed. São Paulo: É Realizações, 2009.
Ordem e História: Platão e Aristóteles.1ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

Pesquisa realizada pelo Dr. Josué Campos Macedo