BENOIT
MURE, PERSONALIDADE MÉDICA DO IMPÉRIO
Em
21 de novembro de 1840 desembarcava no Rio de Janeiro o médico francês Benoît
Mure, que se tornaria o introdutor da Homeopatia no Brasil, chegando a dispor
de sua fortuna pessoal para difundir a medicina e direcioná-la para o
tratamento de escravos e dos "excluídos pela sociedade".
Ainda
que ignorada por muito Homeopatia tem uma longa história política e
institucional no país. Teve várias fases e parece estar agora recobrando seu
fôlego. A Homeopatia foi oficialmente introduzida no Brasil por um discípulo
direto de Samuel Hahnemann, o francês Benoît Jules Mure (1809-1858). Ele chegou
ao país depois de realizar uma peregrinação na Europa, aonde difundiu e
divulgou os princípios da então nova arte médica. Palermo, Paris, Cairo e Malta
estiveram em seu roteiro de propaganda homeopática. Quando desembarcou no Rio
de Janeiro a bordo da barca francesa Eole em novembro de 1840, Mure estava com
31 anos de idade e repleto de projetos.
Sua
história repete a de muitos outros: recuperava-se de uma tuberculose pulmonar.
A moléstia o acometeu bem jovem e como tantos portadores de tísica esteve bem
desenganado depois de uma temporada rodando pelos médicos e clínicas
parisienses. Mure submeteu-se ao tratamento homeopático ministrado por
Sebastião Des Guidi, também discípulo de Hahnemann e introdutor da Homeopatia
na França. Mure recuperou-se.
Proveniente
da burguesia de Lyon formou-se na Faculdade de Medicina de Montpellier. Dentre
todas faculdades européias foi esta que sempre teve a tradição de ser um
importante reduto da medicina vitalista. Onde o debate poderia estar centrado
nas várias concepções de saúde e doença, adaptação e resistência, terreno e
suscetibilidade. Discussões que deram origem às concepções posteriores de
imunidade como fatores decisivos em prognósticos e terapêuticas. O pensar
vitalista médico do XIX tinha como base o pressuposto de que os organismos são
direcionados por uma espécie de "força de saúde" que se impõe
normalmente como força dominante. Abalos deste "princípio vital"
seriam os responsáveis pela aparição de moléstias.
UM
PLANO AO IMPERADOR
Conforme
os registros coletados pelo historiador da medicina e médico Emidgyo Galhardo,
sabe-se que em 18 de dezembro de 1841 foram apresentados ao imperador os
colonos societários franceses, juntamente com Mure. Esta colônia foi o
propósito inicial da vinda de Mure, que era o representante oficial da Union
Industrielle de Paris.
Mure
foi apresentado ao imperador para expor seu plano de ação:
"Venho,
em nome de todas as classes sofredoras que aspiram em França a mudar de
posição, pedir a vossa majestade os meios de gozar, debaixo de um governo
tutelar, do fruto legítimo de seu trabalho." No dia 30 do mesmo mês Mure
segue a bordo da "Caroline" para o Sahy, com as cem famílias
francesas que "trazem ao Brasil o fabrico em grande de máquinas de vapor.
Elas se associam entre si e garantem-se mutuamente contra o incêndio, riscos do
mar, falta de trabalho e despesas de educação dos filhos".
A
ideologia médica nos parece hoje uma matéria anacrônica e fora de contexto
entretanto era o tom prevalente nos embates científicos do século XIX. O
introdutor da Homeopatia no Brasil, influenciado pelas idéias socialistas de
Saint Fourier e Jacotot, funda em 1842 uma colônia societária falansteriana, em
Santa Catarina na península formada pelo Rio São Francisco, denominada de
Colônia Societária do Sahy junto com a Escola Suplementar de Medicina e Instituto
Homeopático do Sahy. Ali se instalam fundando um dispensário de medicamentos,
um centro de ensino com ambulatório e uma comissão de correspondência e
redação.
Compreende-se,
a partir desta atitude militante de Mure, sua luta ulterior, quando incorporou
a seu projeto de expansão de atendimento médico advogando tratamento para
escravos e para os socialmente excluídos do Brasil imperial. Os vínculos entre
o movimento abolicionista e o apoio que obteve de setores ligados aos médicos
homeopatas ainda é um capítulo histórico a ser esmiuçado.
PRIMEIROS
AMBULATÓRIOS POPULARES DO IMPÉRIO
Mure
vitaliza o pensamento médico do Império. Faz preleções pelo futuro da arte
médica, é prosélito de uma medicina social mais ativa, passa a defender
significados e propósitos de sua particular concepção dos objetivos da saúde
pública. Contra uma prática médico-social que excluía, inclui em seu projeto o
acolhimento das classes sociais sem acesso à medicina da Corte. Houve uma
particular e curiosa mistura nas propostas de Mure: socialismo e ideologia
religiosa. Como ideólogo sabia da necessidade de apoio político e do aval
acadêmico para conseguir fazer avançar a institucionalização da prática da Homeopatia.
Articula-se nos contatos políticos para tentar alcançar um estatuto mais
respeitável para a medicina no qual acreditava. Mure vislumbra que a difusão da
Homeopatia pode ser uma perspectiva de alcançar parte dos objetivos malogrados
no Sul.
Consultórios
populares eram abertos no Rio de Janeiro e em Salvador. Estes ambulatórios
gratuitos foram criados pelos homeopatas em 1843, sendo os primeiros ambulatórios
populares do país, e vendo seu sucesso junto à população e o aumento da adesão
popular ao tratamento a Academia Imperial de Medicina, também resolve abri-los
em 1848.
Mure
despede-se do Brasil, de onde parte em abril de 1848. Mure saiu do Brasil
extenuado pelo trabalho incessante e desgastado pelos oito anos de embates
falecendo no Cairo dez anos mais tarde em 1858. Observa-se o surgimento de
novas organizações homeopáticas no país e cresce o número de publicações.
Mas
é através de sua obra empírica/experimental que seu projeto adquiriu dimensão
mundial. Mure, em seu "Patogenesia Brasileira e Doutrina da Escola Médica
do Rio de Janeiro", dirige e compila uma série de 39 patogenesias
(experimentos metódicos de substâncias medicamentosas) com substâncias obtidas,
selecionadas e preparadas segundo a farmacotécnica homeopática, em um período
histórico cujas dificuldades científicas eram literalmente descomunais. Edições
de seu livro aparecem em 1853 (Estados Unidos) e 1859 (Espanha).
UMA
OPÇÃO NATURAL PARA A MEDICINA
O
mundo científico já havia reconhecido de forma especialmente generosa os
trabalhos dos viajantes e naturalistas que catalogaram (científica e
iconograficamente) a exuberante flora e fauna deste país. É o caso dos médicos
holandeses Piso e Marcgrave (naturalistas e médicos integrantes da comitiva de
Maurício de Nassau), de Saint-Hilaire, dos botânicos Spix e Martius e de
pesquisadores menos famosos do século XIX como Freire Alemão, Velloso, Almeida
Pinto, Caminhoá e Peckolt.
Nesta
pós-modernidade tardia seria importante uma revisão histórica do período da
medicina no Império. Faltou reconhecer o trabalho de Mure, especialmente pelo
estudo da fauna e da flora do País. O autor foi bem além de uma catalogação
farmacodinâmica/farmacognósica. Não se detém em fazer uma mera recompilação dos
efeitos medicinais ou de indicações terapêuticas das substâncias obtidas das
fontes da medicina indígena e popular, muito comuns nos tratados dos
botanistas. Apresenta listagens de sintomas obtidos através da experiência
metódica. Faz isto usando as recomendações hahnemanianas quando adota os
critérios de uma Higantropharmacologia (estudo dos efeitos das substâncias
medicinais sobre o homem) quando são registradas as observações dos efeitos -
objetivos e subjetivos -- sobre a totalidade. O trabalho experimental
organizado por Mure não é somente ainda apropriado para subsídios de pesquisa
histórica, e instrumental terapêutico. Representou um incomum marco na
preservação da biodiversidade. Isto em uma época na qual tais preocupações eram
virtualmente inexistentes. Seu trabalho ainda é original e contemporâneo se
considerarmos que desde os anos 1980 há um boom de pesquisas buscando novas
substâncias medicinais nas florestas tropicais. Pode-se observar na obra de
Mure o esforço do trabalho experimental que organiza a matéria médica
brasileira com elementos obtidos de todos os reinos da natureza, muitos deles
ignorados (ou apenas catalogados) por outros ilustres viajantes.